Fernanda Câncio
fernanda.m.cancio@dn.pt
É um fosso com mais de dez metros, cheio de água suja, num prédio inacabado do Porto. Foi aí que a encontraram: calças nos joelhos, queimaduras, sinais de espancamento. Os miúdos dizem que lhe fizeram o que quiseram durante dias - dois, três? -, que lhe arremessaram pedras e pontapés, lhe enfiaram paus no ânus, a insultaram e seviciaram até lhes parecer que já não respirava. Aí, dizem, resolveram livrar-se do corpo.
A autópsia diz que ela morreu afogada. O mais certo é, aliás, que diga ele. O corpo pescado do fosso tinha órgãos genitais masculinos e nos seus papéis o nome de Gisberto Salce Júnior, mesmo se havia seios cirurgicamente implantados e um rosto que foi o de uma mulher bonita. Na morte, talvez fosse outra coisa - um mutante, uma aberração atreita a estremecer conceitos e atrair violências.
Os miúdos têm entre 13 e 16 anos. O mais velho foi posto em prisão preventiva e libertado ao fim de dois meses - fez ontem uma semana. A investigação da PJ não consubstancia a tese de homicídio e os outros testemunharam que ele esteve lá, fez parte, mas não teve culpa.
Valerá a pena lembrar que os jovens sabem que a partir dos 16 anos se paga à séria pelos crimes. Que, como as pessoas crescidas, mentem e tanto mais quanto maior o sarilho. Mas isso nem é o que mais importa: o que mais importa é a óbvia vontade, desde o início, de não querer acreditar que seja possível um bando de "miúdos nossos" ter feito aquilo. Num país onde uma mulher e o seu irmão foram condenados a 20 anos de prisão pela morte da respectiva filha e sobrinha, uma criança cujo corpo nunca apareceu, com base numa coisa chamada "convicção", um corpo pode apresentar irrefutáveis provas de tortura e homicídio que coincidem com a confissão dos suspeitos e tudo se encaminhar para não haver culpados.
E se fossem culpados, que faríamos com eles? O que é que se faz com adolescentes que se comprazem em levar uma pessoa à agonia e em vê-la agonizar? Proíbem-se-lhes os Morangos com Açúcar e a playstation durante um mês? Obrigam-se a uma "conversa séria"? Curioso: nada transpirou do que dizem os miúdos para justificar o que confessam ter feito. Não lhes perguntaram, eles não responderam, ou a resposta é demasiado terrível?
E, no entanto, "eles têm de ser os nossos professores", como diz o padre católico em Laramie, a peça em cena no Maria Matos sobre o homicídio, em 1998, nos EUA, de um homossexual de 21 anos por dois jovens: "Como é que vocês aprenderam isso? O que é que nós, enquanto sociedade, fizemos para vos ensinar isso? Acho que seria fantástico se o juiz dissesse: 'Para além da vossa sentença, têm de contar a vossa história.'"
Fonte: jornal "Diário de Notícias", secção Opinião
Cada vez que leio um artigo de Fernanda Câncio, mais me apetece tornar-me fã...
1 Comments:
At 19 maio, 2006 12:58, Anónimo said…
Também acho que é uma optima jornalista!!Já quanto ao Diario de Notícias acho que a maioria dos textos que ali se publicam actualmente é extremamente conservador e tendencioso...por isso deixei de ler tal jornal...até tenho pena desta jornalista estar a trabalhar para eles...
Black Bird
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