Um ano depois do assassinato da transsexual Gisberta
Tudo na mesma!
Faz amanhã um ano desde que foi encontrado o corpo de Gisberta, transsexual, toxicodependente, seropositiva, prostituta e imigrante brasileira, que sucumbiu a três dias de tortura e sevícias sexuais e posterior afogamento, ao ser lançada a um poço por um bando de rapazes no Porto. Um ano passado, fala-se de um crime que “chocou o País”. E não é verdade: um país chocado, é um País que reage e previne. E não foi assim.
O problema está em que o referido “choque” foi limitado à jovem idade dos autores deste crime (eles próprios vítimas de injustas políticas sociais e de desprotecção de menores), e não se estendeu à perda de uma vida, à exclusão social extrema em que esta vítima mortal estava encurralada, e sobre a qual, um ano depois, praticamente nenhuma intervenção teve lugar, e nada de concreto se alterou. O País pode, portanto, acertar os relógios e continuar a contar os dias até à próxima Gisberta, talvez menos mediática mas nem por isso menos certa. Aliás, o País queria esquecer e já esqueceu.
Um ano depois, temos uma sentença judicial ignóbil que responsabiliza os jovens em causa por agressão mas que os iliba do assassinato e da tortura, sustentando que a vítima morreu por culpa da água em que se afogou. Gisberta morreu assassinada mas ninguém a assassinou, tal como às restantes transsexuais que têm tido sorte semelhante e cujos casos não vêm a público. Por outras palavras, podem matar-se transsexuais, porque isso não tem em si consequência jurídica.
Um ano depois, a protecção legal de pessoas como Gisberta continua inexistente, e as condições de marginalização de grande parte da população transsexual continuam intocadas porque os decisores políticos e o Estado continuam a fugir às suas responsabilidades, tal como aliás no que toca também à população homossexual:
Num país campeão da violência sobre menores, o sistema de “guarda e protecção de menores” continua sem medidas de reforma para que seja mais do que um armazém de crianças e jovens, das quais metade entregues a instituições religiosas, sem contexto emocional ou educativo.
Continua ausente da discussão política o reconhecimento do direito à identidade de género e a protecção legal da população trans contra a discriminação e a violência, no sentido do que legislaram já a Espanha ou a Inglaterra.
Os/as transsexuais continuam sujeitos/as a um processo médico abusivo e mesmo, os transsexuais masculinos, à esterilização forçada, para poderem alterar os seus nomes no BI. Continuam impedidos/as de ver alterado o seu género noutros documentos de identificação, com prejuízo evidente das suas oportunidades de acesso ao emprego.
Nada se fez para limitar o impacto da exclusão social da maioria da população transsexual. A primeira violência de que esta é vítima, é institucional e legal.
Numa altura em que a política institucional volta a adiar o reconhecimento do direito ao casamento civil para os casais do mesmo sexo, lembremos que em Portugal ainda estamos na fase de debater medidas que poderiam significar a diferença entre a vida e a morte.
Quando alguma agenda política e mediática tende a resumir ao tema do “casamento” as reivindicações do movimento Lésbico, Gay, Bissexual e Transgénero (LGBT), o caso de Gisberta Salce Júnior aí está para nos lembrar e não deixar esquecer que em Portugal a homofobia e a transfobia continuam regra, que a verdadeira fractura social está na discriminação, e não no reconhecimento de direitos à população LGBT.
Sobretudo, que no combate a estas discriminações, temas como o do casamento civil são “parte” mas não “o todo”, porque está quase tudo por fazer naquilo que pode em concreto melhorar as vidas sujeitas a estas discriminações e violências.
Certo é que a transfobia, a homofobia, e a violência discriminatória começam e acabam por ser institucionais, e pouco se alterará nas mentalidades enquanto assim for, e enquanto os políticos continuarem a escudar-se na necessidade de “um grande debate nacional” para não fazerem o que está certo: prevenir (a violência e a discriminação), educar e legislar. O que não dizem os políticos que assim falam, é que eles próprios não estão abertos a esse debate:
A legislar contra a discriminação pela orientação sexual ou pela identidade de género, ainda mais desprotegida.
A assumir responsabilidade por políticas activas de Educação para a prevenção destas discriminações, à semelhança de outras.
A assumir a extinção de normas discriminatórias, como a que continua a excluir homossexuais na doação de sangue.
A alterar a legislação discriminatória e contrária ao princípio constitucional de não discriminação em função da orientação sexual, reconhecendo as novas expressões familiares e as famílias não-heterossexuais e os seus direitos: reconhecer os milhares de famílias de homossexuais com filhos e, em consquência, o acesso à adopção, alargar, sim, o acesso ao casamento civil, regulamentar o acesso à inseminação artificial para lá dos casos de fertilidade, regulamentar e fazer aplicar a Lei das Uniões de Facto.
O Estado continua a ser o primeiro violador da igualdade. Não só não a combate como promove a discriminação através da sua inacção e das suas leis.
“Tema fracturante”, realmente, só vemos um: a discriminação que nos expõe à desigualdade e à violência, sobre a qual ninguém em Portugal assume responsabilidades. Mas essa indiferença tem custos humanos e sociais, de que Gisberta é um lembrete incómodo. E prova trágica de que quem não assume as suas responsabilidades, é já responsável.
21 de Fevereiro de 2007
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