Fernanda Câncio
fernanda.m.cancio@dn.pt
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Faltam quatro dias para fazer oito anos. Oito anos são duas legislaturas - no caso até foram mais, por causa das dissoluções, dos pântanos e das fugas. Oito anos sobre quê, alguém sabe? Eu sei: oito anos sobre o dia em que tive, como nunca antes e, até agora, nunca depois, vergonha de ser portuguesa. Oito anos sobre o dia 28 de Junho de 1998, o do primeiro referendo português - aquele sobre o aborto, lembram-se?
Vergonha porquê, perguntam. O povo votou, o povo decidiu, como gostam de dizer aqueles que afinal - apesar de todas as previsões em contrário, de todas as sondagens de esmagadora maioria a favor da mudança da lei - festejaram o resultado. Afinal ganhou o não, mesmo se 68,6% dos eleitores não votaram e se a diferença foi de um cabelo. E ficou o não, mesmo se, de acordo com a Constituição, o número de votantes assegurava o carácter não vinculativo do referendo. E permanece o não, mesmo se aqueles que o defendiam proclamavam, após o fecho das urnas e perante as previsões (erradas) de derrota, que o referendo não devia contar.
A minha vergonha é essa: a de um povo que chamado pela primeira vez a falar directo sobre um assunto que diz respeito a todos, foi dar um mergulho porque o dia estava bonito. A vergonha de saber que a lei que existe, e que passa às mulheres um atestado de incompetência para decidir pela sua cabeça se querem e podem ser mães - ao mesmo tempo que atesta que todas têm capacidade para o ser, mesmo que o não desejem -, só é imposta a quem não tem recursos para a ludibriar. A vergonha de saber que há tanta gente neste País para quem essa monstruosidade incomoda menos que a perda de um bom dia de praia.
Gostava de não voltar a sentir essa vergonha. Gostava de viver num País que, como a Espanha nas palavras do seu primeiro-ministro, José Luis Zapatero, aquando da aprovação da lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, se esforçasse por ser mais decente. Que fizesse por não humilhar os seus cidadãos nas escolhas e relações mais privadas, e percebesse que modernidade ou é isso ou não é. Um país em que não seja preciso fazer marchas do Orgulho Gay, como a que hoje, a partir das 15 horas, desce a Avenida da Liberdade (em eco de outro 28 de Junho, o de 1969 em Nova Iorque e do ataque ao bar Stonewall), porque a humilhação quotidiana terá deixado de ser a regra - e a lei.
Mais uma excelente (para não variar) crónica de Fernanda Câncio. Com jornalistas deste calibre pode ser que Portugal sempre evolua alguma coisinha. Um exemplo para uma classe que parece bem precisar de exemplos...
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