Transfofa em Blog

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terça-feira, junho 03, 2008

Como se sabe, existiram inúmeras classificações relativamente às pessoas transexuais. Cada uma explanando os conceitos pelos quais os seus autores se regiam. Uma das últimas, que felizmente se encontra em franco desuso por esse mundo fora (e esperemos que em Portugal se copie também este desuso) referia-se a uma classificação das pessoas transexuais segundo critérios que iam desde a idade em que a pessoa se “descobria” até à vontade de cada uma de fazer a CRS (Cirurgia de Redesignação de Sexo).

Assim, se uma pessoa “descobrisse” que era transexual até uns 15, 20 anos, diria eu (não tenho conhecimento de limites rígidos, embora não tenha dúvidas que poderão ter existido), seria uma transexual primária. Se se descobrisse depois disso, seria uma transexual secundária. Se não quisesse fazer a CRS, seria uma transexual terciária.

Obviamente que estas classificações nada mais eram que tentativas de impedir que a determinadas pessoas transexuais lhes fossem negados os tratamentos hormonais e/ou as cirurgias. A lógica era similar à utilizada nas teorias que diziam que uma pessoa transexual masculina, por exemplo, teria de ser hetero, ou seja, que teria obrigatoriamente de se sentir atraída por mulheres, ou que as femininas teriam obrigatoriamente de se sentirem atraídas por homens.

Assim, para as pessoas transexuais consideradas secundárias, ou lhes era negado à partida os tratamentos e cirurgias, ou os processos eram bloqueados “ad eternum”, com consultas infinitas sem nunca terem autorização para fazerem sequer tratamentos hormonais devidamente seguidos por profissionais de saúde.

Claro que, às tantas, não havia quem aguentasse tanta demora, e muitas acabavam nas mãos de carniceiros a injectarem silicone (prática totalmente em desuso nos países civilizados) e a auto medicarem-se com hormonas e anti-androgéneos, bastantes vezes tomando doses excessivas que resultavam num deterioramento das funções hepáticas.

Outro efeito muito comum destas classificações surgia quando, ou por ignorância, ou por falta de auto-estima, ou por pura maldade, algumas pessoas transexuais primárias discriminavam as que eram consideradas secundárias ou terciárias. A teoria, grosso modo, rezava que só as primárias é que eram verdadeiras transexuais pois descobriam-no muito cedo, e outras baboseiras do género.

Muito conveniente para os detractores da transexualidade, que encontravam aqui uma óptima arma para dividir uma comunidade, já de si extremamente causticada pela discrimnação e pela transfobia.

Felizmente, hoje em dia já se entende que todas são transexuais, e que cada pessoa “per si” tem o direito de, apesar de ser transexual, querer ou não fazer tratamentos e/ou cirurgias.

Bem, qual não foi o meu espanto quando vi, no documento apresentado em nome das pessoas transexuais pela ILGA-Portugal, e já distribuído pelos partidos com assento parlamentar, o seguinte esclarecimento: “Algumas pessoas sentem esta incompatibilidade entre identidade e corpo desde a infância (transexualidade primária, ou clássica), enquanto que outras sentem-na mais tarde (transexualidade secundária).”

Ou ninguém reparou, ou efectivamente continuam a querer dividir as pessoas transexuais, impedindo assim debates efectivos e uma maior mobilização entre a comunidade. Mais, supostamente o documento foi elaborado se não na totalidade, pelo menos parcialmente, por pessoas transexuais.

Ou estas pessoas também laboram neste tipo de discriminação, o que não acredito, pois isso seria extremamente grave, ou aqui se demonstra a necessidade de ter havido um debate entre as pessoas transexuais para se limarem certas arestas.

O maior problema é que existem mais falhas, a meu ver desnecessárias. Uma nova classificação começa a despontar. Outra divisão entre as pessoas transexuais, desta vez entre visíveis e invisíveis.

O documento refere que “As pessoas que tentam a assimilação social pertencem a uma comunidade a que geralmente se dá o nome de "oculta" ou "invisível", justamente porque não divulgam, a nível social, a sua condição como transexuais.(...) Este é justamente o maior segmento da comunidade transexual.”

Ou seja, uma pessoa transexual assumida, sem medo de o afirmar publicamente , segundo o que está aqui descrito, não quer ser assimilada socialmente, preferindo ser sempre um ser à margem da sociedade? Não faço a menor ideia onde foram buscar esta preciosidade (embora tenha as minhas suspeitas), mas se isto não é discriminatório dentro da comunidade... enfim.

Também nunca vi nenhum estudo que afirmasse que a comunidade invisível seria o maior segmento da comunidade transexual. Falta a nota no documento de onde retiraram esta afirmação. Como pura e simplesmente não tenho dados, não posso nem aceitar nem refutar, mas parece-me completamente desnecessária esta menção no mesmo.

A comunidade visível é representada como: “A comunidade "visível", e da qual é inferida a imagem mais comum do que é transexualidade, é irregular e não-representativa de toda a comunidade transexual.”

Ora bem, esta do irregular põe-me à partida a questão de quais são as regras pelas quais a comunidade se devia reger, para estar fora das mesmas, portanto irregular. Se se referem a serem todas as pessoas pertencentes a este segmento diferentes umas das outras, eu não nomearia como “irregulares” mas sim, diversificadas. Afinal não é o direito à diversidade um dos baleartes da luta anti-discriminação?

O ser não representativa parece-me bastante obvio, tal como a comunidade invisível também não o é. Aliás, essa, pela sua própria invisibilidade, não é representativa de nada, diria eu.

Acrescento ainda que a definição da comunidade invisível atinge muita gente de um modo muito desagradável. E pessoas que já fizeram muito (ou tentaram fazer) pela comunidade transexual no seu todo a nível mundial. Reaparem quem são algumas pessoas que NÃO querem se assimiladas/aceites pela generalidade da comunidade: Lynn Conway, Andrea James, Calpernia Addams, Carla Antonelli, Filipa Gonçalves, April Ashley, Dana International, Kim Pérez, Bülent Ersoy, Jó Bernardo, Georgina Beyer, Roberta Close, Jan Hamilton, Jin Xing e muitas mais, que durante tanto tempo têm dado o seu contributo para darem visibilidade, compreensão e aceitação a uma comunidade tão falha disso mesmo.

Eu, pelo meu lado, sinto-me honrada por ter tal companhia ao assumir-me publicamente como a mulher transexual que sou, sem vergonha de o ser, e lutar por uma plena aceitação e completa integração na sociedade.

Estes são alguns pontos que me fazem ter pena de haver uma sistemática recusa de debate por parte de sectores menores sobre assuntos que dizem respeito a um todo.


Treze pessoas foram detidas por tentarem celebrar frente à câmara municipal de Moscovo uma marcha a favor dos direitos dos homossexuais, não autorizada pela administração local.