Considerações sobre a Proposta de Lei de Identidade de Género do Governo (Proposta de Lei n.º 37/XI)
Como se sabe, o Governo apresentou recentemente uma Proposta de Lei de Identidade de Género (LIG). (Pode ser lida na totalidade clicando AQUI)
Só recentemente pude ler a dita proposta, e novamente me senti defraudada e desiludida.
Tal como a proposta do BE, não se trata efectivamente de uma proposta de LIG, mas de uma mera agilização de parte do processo a que se têm de submeter as pessoas transexuais.
O projecto trata apenas da questão do registo civil, facilitando a alteração de nome e género, libertando assim dos tribunais esta questão. Para isso basta ser-se de nacionalidade portuguesa, maior de idade e que não se mostre interdito ou inabilitado por anomalia psíquica, a quem seja diagnosticada perturbação de identidade de género.
Mais uma vez, não me parece de todo justo que face à incapacidade médica de a diagnosticar quando junto com doenças do foro psiquiátrico, se negue o direito à identidade de género de uma pessoa transexual. Qualquer pessoa transexual, como qualquer outra pessoa, pode sofrer de uma doença psíquica qualquer. E a negação do direito que qualquer pessoa tem de ver reconhecida a sua IG por se sofrer de uma doença mental parece-me um abuso. Já não basta a uma pessoa sofrer de uma doença mental, ainda leva por cima com a negação da sua identidade.
Tal como afirmei no caso da proposta do BE, cabe à classe médica a descoberta de métodos que os ajudem a descobrir a IG de uma pessoa, e não negar-se o reconhecimento dessa identidade por incapacidade de a diferenciar.
No registo civil será apresentado um requerimento em que conste o número de identificação civil e do nome próprio pelo qual o requerente pretende vir a ser identificado, podendo, desde logo, ser solicitada a realização de novo assento de nascimento;
Penso que será somente pelo número de identificação civil que o conservador saberá de quem se trata, pois o nome próprio pelo qual se deseja ser identificado ainda não existe, nos registos.
Juntamente com o requerimento dever-se-à apresentar um relatório elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género.
O que se entende aqui como equipa clínica multidisciplinar? Um psiquiatra sexólogo mais um psicólogo? Mais um endocrinologista? Mais um cirurgião?
O cirurgião não tem interferência no diagnóstico, só inicia a sua participação no fim do processo, quando já se está mais que diagnosticado. O endocrinologista só interfere na parte referente ao tratamento hormonal, portanto também não faz diagnósticos.
Um psiquiatra e um psicólogo? Falta um esclarecimento desta parte.
Norma geral é o chefe de equipa que assina os relatórios, não todos os clínicos intervenientes. Pergunto-me eu, como pode o conservador saber se um relatório que lhe é apresentado com a assinatura de um médico é de facto o chefe de uma equipa de sexologia clínica? Novamente falta um esclarecimento que evite futuros dissabores a quem requeira.
Da parte do conservador, terá oito dias para decidir. Ou a documentação está conforme ou não. Em que casos poderá pedir o “aperfeiçoamento do pedido”?
Quer dizer o requerimento deverá seguir (penso eu) uma minuta, logo aí não vejo esclarecimentos a pedir. Será então do relatório clínico? Em que bases? Assinatura de médico (ilegível)? Falar de disforia de género em vez de transtorno de identidade de género, que é a mesma coisa mas que um conservador não tem a obrigação de saber? Este ponto parece-me muito susceptível de provocar atrasos. É muito mais simples o binómio tem-se a documentação toda devidamente apresentada? Se sim, avança, se não, rejeita-se.
O artº 68 diz que “A mudança de sexo e a consequente alteração de nome próprio não são averbadas oficiosamente a nenhum assento”. Imediatamente a seguir, no artº 69 é afirmado que “Ao assento de nascimento são especialmente averbados: alínea o) A mudança de sexo e a consequente mudança de nome próprio”. Bem, ou não é averbado a nenhum assento, ou é ao assento de nascimento do indivíduo, digo eu. Em que é que se fica? Outro ponto a necessitar esclarecimento.
O resto do documento parece-me razoável.
Tal como a proposta do Bloco de Esquerda, esta passa ao lado dos seguintes problemas:
A duração máxima que cada processo deverá ter, que presentemente não tem limite, e portanto continuarão a existir processos com 4, 5, 7 ou até mesmo dez anos.
A interferência da Ordem dos Médicos na autorização final para as cirurgias que, na minha opinião, é inútil, abusiva e intrusiva especialmente neste caso.
A necessidade de tratamentos específicos para cada caso (MtF e FtM) que presentemente não são fornecidos pelo SNS.
A ausência de menção de que as pessoas transexuais têm direito a verem a sua IG reconhecida independentemente de desejarem ou não submeterem-se a uma CRS.
Ou seja, com esta proposta, uma pessoa transexual que queira mudar a sua documentação mas que não deseje submeter-se a uma CRS, vai ser obrigada a mentir sempre e sempre para obter o diagnóstico.
E isto apesar de cada vez mais as comissões europeias vincularem a documentação de uma pessoa à sua IG e não a cirurgias, e que até são mencionadas na explanação dos motivos.
E isto porque os processos psiquiátricos estão unicamente virados para as cirurgias, em vez de estarem para ajudar as pessoas a aceitarem-se. Basta pensar-se que, se uma pessoa transexual admitir sequer que tem dúvidas sobre a vontade de fazer a CRS, o seu processo automaticamente entra num estado de hibernação, quando não cessa de imediato. E como todo o processo está virado para as cirurgias, se uma pessoa admite a mais pequena dúvida,e o processo pára, muitos psiquiatras deixam de passar, ou mesmo nunca chegam a iniciar, receitas hormonais. Portanto uma paragem forçada do tratamento hormonal, ou um tratamento que nunca chega a iniciar-se.
Ora será justo pensar-se que isto acontecerá na mesma com os relatórios para se apresentarem. Não vejo porque será diferente. Continuaremos a estar sujeitos a uma CRS não desejada por muitas pessoas transexuais, porque o governo decidiu omitir o direito a cada pessoa ser identificada pela sua IG, dando espaço a que os psiquiatras continuem a exigir a vontade de se fazer a CRS como necessidade para o diagnóstico de transexualidade.
Como disse no caso da proposta do BE, o direito à alteração da documentação legal tem de estar associado à identidade de género, e não a cirurgias. É necessária uma lei de identidade de género em Portugal, não uma mera agilização de uma pequena parte de um processo, que contemple toda a população transexual e não somente parte dela.
Ambas as propostas (Governo e BE) representam um bom avanço, no entanto ambas podiam (e deviam) ter ido mais longe, bastante mais longe.
Como se sabe, o Governo apresentou recentemente uma Proposta de Lei de Identidade de Género (LIG). (Pode ser lida na totalidade clicando AQUI)
Só recentemente pude ler a dita proposta, e novamente me senti defraudada e desiludida.
Tal como a proposta do BE, não se trata efectivamente de uma proposta de LIG, mas de uma mera agilização de parte do processo a que se têm de submeter as pessoas transexuais.
O projecto trata apenas da questão do registo civil, facilitando a alteração de nome e género, libertando assim dos tribunais esta questão. Para isso basta ser-se de nacionalidade portuguesa, maior de idade e que não se mostre interdito ou inabilitado por anomalia psíquica, a quem seja diagnosticada perturbação de identidade de género.
Mais uma vez, não me parece de todo justo que face à incapacidade médica de a diagnosticar quando junto com doenças do foro psiquiátrico, se negue o direito à identidade de género de uma pessoa transexual. Qualquer pessoa transexual, como qualquer outra pessoa, pode sofrer de uma doença psíquica qualquer. E a negação do direito que qualquer pessoa tem de ver reconhecida a sua IG por se sofrer de uma doença mental parece-me um abuso. Já não basta a uma pessoa sofrer de uma doença mental, ainda leva por cima com a negação da sua identidade.
Tal como afirmei no caso da proposta do BE, cabe à classe médica a descoberta de métodos que os ajudem a descobrir a IG de uma pessoa, e não negar-se o reconhecimento dessa identidade por incapacidade de a diferenciar.
No registo civil será apresentado um requerimento em que conste o número de identificação civil e do nome próprio pelo qual o requerente pretende vir a ser identificado, podendo, desde logo, ser solicitada a realização de novo assento de nascimento;
Penso que será somente pelo número de identificação civil que o conservador saberá de quem se trata, pois o nome próprio pelo qual se deseja ser identificado ainda não existe, nos registos.
Juntamente com o requerimento dever-se-à apresentar um relatório elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género.
O que se entende aqui como equipa clínica multidisciplinar? Um psiquiatra sexólogo mais um psicólogo? Mais um endocrinologista? Mais um cirurgião?
O cirurgião não tem interferência no diagnóstico, só inicia a sua participação no fim do processo, quando já se está mais que diagnosticado. O endocrinologista só interfere na parte referente ao tratamento hormonal, portanto também não faz diagnósticos.
Um psiquiatra e um psicólogo? Falta um esclarecimento desta parte.
Norma geral é o chefe de equipa que assina os relatórios, não todos os clínicos intervenientes. Pergunto-me eu, como pode o conservador saber se um relatório que lhe é apresentado com a assinatura de um médico é de facto o chefe de uma equipa de sexologia clínica? Novamente falta um esclarecimento que evite futuros dissabores a quem requeira.
Da parte do conservador, terá oito dias para decidir. Ou a documentação está conforme ou não. Em que casos poderá pedir o “aperfeiçoamento do pedido”?
Quer dizer o requerimento deverá seguir (penso eu) uma minuta, logo aí não vejo esclarecimentos a pedir. Será então do relatório clínico? Em que bases? Assinatura de médico (ilegível)? Falar de disforia de género em vez de transtorno de identidade de género, que é a mesma coisa mas que um conservador não tem a obrigação de saber? Este ponto parece-me muito susceptível de provocar atrasos. É muito mais simples o binómio tem-se a documentação toda devidamente apresentada? Se sim, avança, se não, rejeita-se.
O artº 68 diz que “A mudança de sexo e a consequente alteração de nome próprio não são averbadas oficiosamente a nenhum assento”. Imediatamente a seguir, no artº 69 é afirmado que “Ao assento de nascimento são especialmente averbados: alínea o) A mudança de sexo e a consequente mudança de nome próprio”. Bem, ou não é averbado a nenhum assento, ou é ao assento de nascimento do indivíduo, digo eu. Em que é que se fica? Outro ponto a necessitar esclarecimento.
O resto do documento parece-me razoável.
Tal como a proposta do Bloco de Esquerda, esta passa ao lado dos seguintes problemas:
A duração máxima que cada processo deverá ter, que presentemente não tem limite, e portanto continuarão a existir processos com 4, 5, 7 ou até mesmo dez anos.
A interferência da Ordem dos Médicos na autorização final para as cirurgias que, na minha opinião, é inútil, abusiva e intrusiva especialmente neste caso.
A necessidade de tratamentos específicos para cada caso (MtF e FtM) que presentemente não são fornecidos pelo SNS.
A ausência de menção de que as pessoas transexuais têm direito a verem a sua IG reconhecida independentemente de desejarem ou não submeterem-se a uma CRS.
Ou seja, com esta proposta, uma pessoa transexual que queira mudar a sua documentação mas que não deseje submeter-se a uma CRS, vai ser obrigada a mentir sempre e sempre para obter o diagnóstico.
E isto apesar de cada vez mais as comissões europeias vincularem a documentação de uma pessoa à sua IG e não a cirurgias, e que até são mencionadas na explanação dos motivos.
E isto porque os processos psiquiátricos estão unicamente virados para as cirurgias, em vez de estarem para ajudar as pessoas a aceitarem-se. Basta pensar-se que, se uma pessoa transexual admitir sequer que tem dúvidas sobre a vontade de fazer a CRS, o seu processo automaticamente entra num estado de hibernação, quando não cessa de imediato. E como todo o processo está virado para as cirurgias, se uma pessoa admite a mais pequena dúvida,e o processo pára, muitos psiquiatras deixam de passar, ou mesmo nunca chegam a iniciar, receitas hormonais. Portanto uma paragem forçada do tratamento hormonal, ou um tratamento que nunca chega a iniciar-se.
Ora será justo pensar-se que isto acontecerá na mesma com os relatórios para se apresentarem. Não vejo porque será diferente. Continuaremos a estar sujeitos a uma CRS não desejada por muitas pessoas transexuais, porque o governo decidiu omitir o direito a cada pessoa ser identificada pela sua IG, dando espaço a que os psiquiatras continuem a exigir a vontade de se fazer a CRS como necessidade para o diagnóstico de transexualidade.
Como disse no caso da proposta do BE, o direito à alteração da documentação legal tem de estar associado à identidade de género, e não a cirurgias. É necessária uma lei de identidade de género em Portugal, não uma mera agilização de uma pequena parte de um processo, que contemple toda a população transexual e não somente parte dela.
Ambas as propostas (Governo e BE) representam um bom avanço, no entanto ambas podiam (e deviam) ter ido mais longe, bastante mais longe.
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