Carla Antonelli em Portugal - relato e considerações
Cheguei às imediações do Centro LGBT pelas oito e meia da tarde, para um evento que se queria a começar à nove da noite. O tempo estava como tem estado este Verão: fresco e ventoso, não muito agradável.
Quando consegui lugar para estacionar dirigi-me logo para o dito Centro, ao qual cheguei pelas 15 para as nove e pensando “Bem, já lá deve estar alguma gente e pessoal cá fora a fumar o seu cigarrito”. Engano meu. Ao virar a esquina para me dirigir à entrada lateral, que era a que estava aberta, como de costume, não se via ninguém cá fora. “Está fresco”, pensei eu, e continuei.
Entrei e o choque: Não estava ninguém, salvo o pessoal do bar. E, supostamente, só faltavam 15 minutos para o evento começar. Indagando no bar fiquei a saber que era a primeira pessoa a chegar para a conversa com a Carla Antonelli, e que ela e a organização (e os outros oradores) tinham saído para jantar.
Fui fumar um cigarro para o fresco e ventoso entardecer, enquanto me perguntava “Se já sabem de antemão que às nove da noite é muito cedo, porque carga de água insistem em agendar para essa hora o início deste tipo de eventos???”
Bem, acabei de fumar e fui para dentro sentar-me à espera, sentindo-me um bocado estúpida por ser, pelos vistos, das poucas pessoas que cumprem horários.
E o pessoal lá foi chegando, a Sandra, que se sentou ao pé de mim, na primeira fila, como é meu costume, o Dr. Décio, que veio trocar umas palavras comigo, e muito mais pessoal. A Inês, que se sentou ao lado da Sandra, ficando os restantes dois lugares para Nuno Pinto e Corte-Real ao lado dele. Isto claro, depois dos oradores terem vindo do jantarzito.
Presenças trans que eu tivesse dado por elas, como sempre primaram pelo minimal repetitivo. Dois trans masculinos que só vão a eventos trans da ILGA ou do GRIT (desde que não sejam públicos, pelo menos um deles nunca o vi a marchar pela ILGA nas marchas do orgulho), eu, uma trans que nunca tinha visto e que só vi no fim, e mais uma que fiquei na dúvida se seria um conhecimento do Face ou não.
A mesa de oradores era composta por três pessoas: a Júlia Pereira, a Carla Antonelli e o José Soeiro.
E finalmente lá se deu início à conversa. O esquema era o seguinte: o moderador (existe sempre um nos eventos trans da ILGA) iniciou com uma série de perguntas dirigidas ou a um orador específico, ou a quem desejasse responder da mesa, perguntas essas pré-combinadas, não fosse alguma pergunta mais ousada sair fora dos planos. Seguir-se-iam perguntas da assistência, por opção seriam todas feitas de seguida, e depois a mesa responderia.
Eu pessoalmente não sou apologista deste método. Funciono muito à base do “resposta imediata” e estas coisas de esperar pela minha vez para indagar algo ou responder a alguma intervenção feita meia hora depois, quando já outros assuntos foram levantados e se revelaram pertinentes, sinceramente não é para mim. O que deve ser dito ou contraposto é logo no imediato, esperar para falar e depois voltar atrás para ir rebuscar assuntos anteriores está fora de questão para a minha maneira de ser. No entanto reconheço que não imagino outra maneira de tentar pôr um pouco de ordem num debate deste tipo. Mas como para o meu feitio não dá, prefiro deixar os meus comentários para estas linhas, enquanto vou tentando decifrar o que escrevi à pressa em cima do joelho.
De acordo com os meus apontamentos, a primeira pergunta foi algo como isto: se as leis portuguesa e espanholas tinham de algum modo contribuído para a aceitação das pessoas transexuais.
Carla acha que sim, deu-nos dignidade o facto de podermos ter a documentação de acordo com quem somos, e que o facto de não se exigir cirurgias veio ajudar pelo menos 50% da população transexual.
Bem, aceitação, não sei e tenho muitas dúvidas. As leis ajudam as trans, sim, na medida em que podem mais facilmente e rapidamente aceder a documentação legal correcta. Mas aceitação (e aqui deduz-se que seja pela comunidade cis) não vejo muito bem onde ajude, até porque os processos (pelo menos em Portugal) não são do domínio público. É que para aceitação, tem de se saber que determinada pessoa é transexual. Se não se sabe, nada feito. E não acredito que as pessoas transexuais andem por aí a mostrar a documentação e a avisar “mas atenção que sou transexual”. Dignidade e ajuda, deram, mas aceitação não vejo onde.
A segunda pergunta era mais ou menos o que se poderia fazer para melhorar as leis existentes nos dois países.
Júlia, e foi uma surpresa, defendeu inovar as leis para uma semelhante ou igual à lei argentina. Surpresa porque, como é sabido, a sua posição (bem como do GRIT e da ILGA) tem sido a contrária à despatologização. E ver agora uma pessoa que tem defendido a patologização a defender uma lei despatologizante foi uma surpresa. Agradável, finalmente, e que cria condições para um futuro trabalho conjunto (embora não seja muito costume da ILGA trabalhar em conjunto com outros grupos ou associações nos temas trans, excepção feita à rede ex-aequo que tem sido a única a trabalhar em conjunto, vá-se lá saber porquê).
Carla falou muito do bom que é cada vez existirem leis mais e mais avançadas e como eram um exemplo umas para as outras e um incentivo. Pelo menos foi isto que apanhei do castelhano. Basicamente.
José Soeiro mencionou, como ex-legislador, que a lei portuguesa, na sua concepção, tinha sido feita não para a existência de listas de médicos autorizados a passarem diagnósticos, mas precisamente para o seu contrário. Defendeu que cada médico (como no caso das certidões de óbito) deve ser eticamente responsável pelo que assina. O Dr Décio não aguentou e defendeu a posição médica afirmando que foram as conservatórias a questionar quem podia passar os ditos diagnósticos de transexualidade. Sobre isto já me pronunciei muitas vezes. Os sectores mais conservadores da classe médica (os mesmos que dizem que transexuais são só quem se quer operar, que homem que é homem não quer engravidar e outras bacoradas similares) conseguiram forçar a inclusão na lei da “equipa multidisciplinar de sexologia clínica” e isto é que deu azo às dúvidas das conservatórias. Bem entendido, para o bem e defesa das pessoas transexuais, segundo eles. Não posso deixar de pensar no veto presidencial à lei, que também era para o bem e defesa as pessoas transexuais, e como no Porto, no Simpósio Identidade de Género e Transexualidade, em que fui a única trans a defender a despatologização e que vários médicos mostraram posições contrárias, dizendo que os processos e os requisitos para o diagnóstico eram, também, para o bem e defesa das pessoas transexuais, e em que eu falho em ver, por exemplo, como é que a exigência de divórcio da parte de quem se submeta a este processo, em vigor quando eu iniciei o meu processo (ignoro se ainda se encontra em vigor) é para o bem de qualquer pessoa transexual. Isto para só dar um exemplo.
Outra pergunta focou o período do Real Life Test, que é exigido na lei espanhola mas não na portuguesa. E aqui deu erro. Da maneira que a pergunta se encontrava feita dava a impressão de que os dois anos do Real Life Test não são exigidos em Portugal, o que é falso. Essa exigência não se encontra na lei portuguesa porque faz parte dos requisitos médicos para o diagnóstico de transexualidade. E a lei portuguesa não é uma lei sobre transexualidade, mas só sobre a alteração da documentação legal. Logo não fazia sentido entrar-se nos requisitos médicos para os relatórios. Mas o facto de não estar na lei não implica que esses dois anos não se apliquem em Portugal. Teoricamente nenhuma pessoa transexual pode obter o diagnóstico sem passar por esses dois anos.
Dois anos para o Real Life Test é simplesmente demasiado. Seis meses bastam, e já existe quem defenda esta redução. Eu, por exemplo, já me tinha assumido publicamente quase ano e meio antes de iniciar o meu processo e quando o iniciei já fazia tratamento hormonal também.
Carla falou sobre isto, mas ou não disse nada de relevante ou eu não apanhei castelhano suficiente para escrever qualquer coisa nos meus apontamentos. Mea culpa.
Pergunta seguinte: outras políticas necessárias, como a inclusão da identidade de género no artº 13º da Constituição. Coisa que eu, já em 2006, na marcha pride, juntamente com as Panteras Rosa, exigia numa faixa como necessário e essencial. Afinal temos a orientação sexual inserida, porque razão não deve estar lá a identidade de género. Mais, expressão de género também.
José Soeiro mencionou também o muito que falta fazer a nível de legislação laboral e numa educação sexual inclusiva, ponto para mim fulcral para se começar a acabar com a discriminação LGBT.
Pergunta seguinte, como combater a abusiva intromissão da Ordem dos Médicos nos processos?
Júlia falou que se tem de combater, sim, mas depois da intervenção dela fiquei sem saber como o quer fazer. Ou ela não disse ou eu não percebi. Em todo o caso, no simpósio do Porto ficou bem patente que até médicos que fazem parte da comissão na Ordem concordam em que ela não tem razão para existir. Pelo menos no momento presente. Pode já ter tido a sua razão de existir, por exemplo, para maior aceitação dos sectores mais conservadores dos processos, tratamentos hormonais e cirurgias, mas hoje em dia é mais uma demora (de muito tempo) em processos que se querem céleres.
Pergunta seguinte: despatologização. Não apontei o enunciado mas basicamente era para cada um dos oradores demonstrar a sua posição e qual o grau de prioridade. Ou quem quisesse, já não me recordo bem. José Soeiro apoia a despatologização, é do conhecimento público. Júlia Pereira não apoiava, também é do conhecimento público. E digo não apoiava porque ao dar o seu apoio a uma lei de identidade como a da argentina, totalmente despatologizante (e despsiquiatrizante) ficou numa posição um bocado dúbia. Até ao fim esta dúvida não me ficou esclarecida.
A Carla, também é (ou devia ser) do conhecimento público, uma apoiante da campanha STOP Patologização trans. E como tal considerou a despatologização como um assunto prioritário. Afirmou que a transexualidade não é doença, defendeu a liberdade individual nos processos, ou seja, cada pessoa deve ter a liberdade de levar o seu processo até onde muito bem entenda (aqui eu entendi que seria mais referente à parte cirúrgica), e que em vez de ser considerada uma patologia devia ser considerada como uma situação de saúde.
E deu como exemplo a gravidez. Agora um pequeno áparte: por volta de 2006, eu conversava com amigos (activistas e não-activistas) sobre os porquês da transexualidade ser considerada uma doença. E dava como exemplo precisamente a gravidez. E levava de todos por citar este exemplo. Que não seria compreendido nem aceite pela sociedade, que não devia de ir por aí, etc etc etc. Bem, e eu considerei essas opiniões e nunca usei esse argumento. Descobri outros, claro, mas este, tão óbvio, nunca o usei. E agora, ao ver tanta gente a usá-lo, fico com uma sensação meio estranha.
Passando à frente, pergunta seguinte: despatologização ou despsiquiatrização? Não consegui apanhar nada. Ou os intervenientes não foram claros nas suas alocuções ou eu não as entendi correctamente.
Última pergunta: como classificar então a transexualidade de um modo não patologizante? Não ouvi nenhuma opinião, falaram mas não apresentaram nenhuma proposta. A única coisa que apanhei (e nem me lembro de onde veio) foi incluir na medicina preventiva. A lógica escapou-me. Mas aqui tenho eu uma: a transexualidade deve ser classificada internacionalmente como uma Condição médica (Medical condition). E o que são as condições médicas? São simplesmente casos que necessitam de intervenção médica mas que não são considerados como doenças. Assim libertamo-nos do estigma da doença (e do ainda mais grave doença psiquiátrica) sem se perder o direito ao acesso a tratamentos e cirurgias.
De seguida foram as declarações, comentários e perguntas da assistência. E aqui, mais uma vez, não posso deixar de citar a intervenção do Dr. Décio, que muito agradavelmente nos comparou, quando dizemos que a nossa identidade de género é a oposta à nossa genitália, aos D. Quixotes e Napoleões. Para defender a patologização e a psiquiatrização, entenda-se. Lendo o que ele disse, entreve-se o que não disse. Que tal como os Napoleões e D. Quixotes somos mas é todos malucos, mas que no caso da nossa maluqueira, podem-se fazer cirurgias e tratamentos hormonais. Não o diz, mas está implícito no seu discurso.
Mas não se ficou por aqui. Entre outras coisas, afirmou que o tempo dos processos se deve à despistagem de outras patologias, como a esquizofrenia (que adooora usar como exemplo) e que a transexualidade provoca mal estar, logo é doença.
Bem, e eu que pensava que o tempo gasto nos processos era para o diagnóstico do transtorno de identidade de género fiquei a saber que é meramente uma despistagem da esquizofrenia. E esta, hein? Obviamente que as repercussões deste pensamento leva-nos a questionar o que andamos lá a fazer anos e anos? Quer dizer, a esquizofrenia não demora assim tanto a ser diagnosticada. Nem de perto nem de longe. O que implica que andamos anos e anos a encher bonés. O que implica que os médicos que nos “tratam” não sabem nem podem diagnosticar a transexualidade. Como eu sempre disse, o que fazem é demorar e complicar o mais que podem. Se uma pessoa aguenta tudo, então deve de ser. Pum. E com isto demoram, como já aconteceu, 5, 7 e dez anos.
Em relação ao mal estar, eu gostaria de ter perguntado (na altura) ao Dr o seguinte: sou desempregada de longa duração e isso provoca-me mal estar. A que especialidade me devo dirigir para me curarem? (e como cura entenda-se arranjar-me trabalho). Sabe-se qual a causa e qual o remédio, mas não sabemos (desempregados) a que especialidade devemos pedir consulta.
Para abrilhantar mais a coisa, e como é usual, afirmou que a transexualidade é uma malformação congénita. Sem provas, claro está, somente por exclusão de partes. Pena que na exclusão de partes não tenha excluído a condição médica (que nem mencionou), adorava ouvir a lógica.
E para afirmar que a transexualidade deve continuar debaixo da alçada dos psiquiatras e psicólogos, deu o exemplo de um trans que obteve o relatório rápido demais (portanto mal diagnosticado) e que não esteve para esperar pelas cirurgias e foi à Indonésia. E depois arrependeu-se e chegou à conclusão de que afinal era gay. Segundo ele, este caso está em tratamento agora.
O bom destas coisas é que se pode afirmar o que se quiser que nunca se pode comprovar nada. O sigilo médico assim o faz. Nem é preciso pois Carla, na sua interpelação final, rebateu magistralmente este argumento com a liberdade. A liberdade pessoal que cada um de nós tem de cometer erros, erros esses que muitas vezes nos podem custar a vida. E deu como exemplo uma pessoa que vá praticar parapente, por exemplo, e que o parapente se rasgue e caia para a morte. Eu lembrei-me de outro: aquelas pessoas que se casam com alguém e que depois descobrem que o casamento foi um erro. E quantas vezes este erro não custa a vida, nomeadamente a mulheres? Era giro, por exemplo, iniciarem-se processos psiquiátricos de casamentos. Quem quisesse casar tinha de passar por consultas psiquiátricas e psicológicas para se ver se efectivamente estavam em sintonia ou se havia risco de existir violência doméstica no futuro. O Dr deve também defender isto, não? E porque não processos psiquiátricos a governantes? Esta linha de pensamento dá para muita coisa.
Falou-se também das cirurgias em Coimbra, onde segundo Júlia Pereira não estão a ser realizadas, no tempo de demora dos processos (José Soeiro), mas nada assim que merecesse apontamento.
Salvo, para finalizar, uma declaração de Nuno Pinto a dizer que não se encontra em lado nenhum (DSM e CID, entenda-se) a transexualidade como doença mental. Argumento que classifico como um bocado naive. Não é necessário estar explicitamente escrito “A transexualidade É uma doença mental”. Basta encontrar-se nos capítulos das doenças mentais, e melhor, basta encontrar-se no DSM, que é o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, que engloba tudo, doenças e perturbações (para quem diga que perturbação não é doença). Portanto não está escrito mas está implícito.
E a menção da intervenção final de Côrte-Real, que serviu para me deixar muitas dúvidas sobre qual a posição da ILGA em relação à transexualidade. Até agora tem sido uma posição patologizante e psiquiatrizante que, apesar de dizer que é para o bem das pessoas transexuais, não o é na realidade. O facto de trazer Carla Antonelli a Portugal para este debate e o facto de Júlia Pereira ter defendido publicamente uma lei despatologizante como a da Argentina parecem indicar uma mudança de posições da ILGA e do GRIT. A intervenção de Côrte-Real deixou a sensação de uma manutenção de posições. E assim o evento acabou sem uma tomada de posição clara e inequívoca por parte da ILGA.
E o evento terminou. Carla Antonelli ainda ficou mais um bocado para quem quisesse falar com ela, e eu fui para casa (sentia que era estranho aparecer à Carla e dizer “Olá, não nos conhecemos de lado nenhum mas eu também sou activista”, afinal os activistas estavam na mesa, digo eu).
Quando consegui lugar para estacionar dirigi-me logo para o dito Centro, ao qual cheguei pelas 15 para as nove e pensando “Bem, já lá deve estar alguma gente e pessoal cá fora a fumar o seu cigarrito”. Engano meu. Ao virar a esquina para me dirigir à entrada lateral, que era a que estava aberta, como de costume, não se via ninguém cá fora. “Está fresco”, pensei eu, e continuei.
Entrei e o choque: Não estava ninguém, salvo o pessoal do bar. E, supostamente, só faltavam 15 minutos para o evento começar. Indagando no bar fiquei a saber que era a primeira pessoa a chegar para a conversa com a Carla Antonelli, e que ela e a organização (e os outros oradores) tinham saído para jantar.
Fui fumar um cigarro para o fresco e ventoso entardecer, enquanto me perguntava “Se já sabem de antemão que às nove da noite é muito cedo, porque carga de água insistem em agendar para essa hora o início deste tipo de eventos???”
Bem, acabei de fumar e fui para dentro sentar-me à espera, sentindo-me um bocado estúpida por ser, pelos vistos, das poucas pessoas que cumprem horários.
E o pessoal lá foi chegando, a Sandra, que se sentou ao pé de mim, na primeira fila, como é meu costume, o Dr. Décio, que veio trocar umas palavras comigo, e muito mais pessoal. A Inês, que se sentou ao lado da Sandra, ficando os restantes dois lugares para Nuno Pinto e Corte-Real ao lado dele. Isto claro, depois dos oradores terem vindo do jantarzito.
Presenças trans que eu tivesse dado por elas, como sempre primaram pelo minimal repetitivo. Dois trans masculinos que só vão a eventos trans da ILGA ou do GRIT (desde que não sejam públicos, pelo menos um deles nunca o vi a marchar pela ILGA nas marchas do orgulho), eu, uma trans que nunca tinha visto e que só vi no fim, e mais uma que fiquei na dúvida se seria um conhecimento do Face ou não.
A mesa de oradores era composta por três pessoas: a Júlia Pereira, a Carla Antonelli e o José Soeiro.
E finalmente lá se deu início à conversa. O esquema era o seguinte: o moderador (existe sempre um nos eventos trans da ILGA) iniciou com uma série de perguntas dirigidas ou a um orador específico, ou a quem desejasse responder da mesa, perguntas essas pré-combinadas, não fosse alguma pergunta mais ousada sair fora dos planos. Seguir-se-iam perguntas da assistência, por opção seriam todas feitas de seguida, e depois a mesa responderia.
Eu pessoalmente não sou apologista deste método. Funciono muito à base do “resposta imediata” e estas coisas de esperar pela minha vez para indagar algo ou responder a alguma intervenção feita meia hora depois, quando já outros assuntos foram levantados e se revelaram pertinentes, sinceramente não é para mim. O que deve ser dito ou contraposto é logo no imediato, esperar para falar e depois voltar atrás para ir rebuscar assuntos anteriores está fora de questão para a minha maneira de ser. No entanto reconheço que não imagino outra maneira de tentar pôr um pouco de ordem num debate deste tipo. Mas como para o meu feitio não dá, prefiro deixar os meus comentários para estas linhas, enquanto vou tentando decifrar o que escrevi à pressa em cima do joelho.
De acordo com os meus apontamentos, a primeira pergunta foi algo como isto: se as leis portuguesa e espanholas tinham de algum modo contribuído para a aceitação das pessoas transexuais.
Carla acha que sim, deu-nos dignidade o facto de podermos ter a documentação de acordo com quem somos, e que o facto de não se exigir cirurgias veio ajudar pelo menos 50% da população transexual.
Bem, aceitação, não sei e tenho muitas dúvidas. As leis ajudam as trans, sim, na medida em que podem mais facilmente e rapidamente aceder a documentação legal correcta. Mas aceitação (e aqui deduz-se que seja pela comunidade cis) não vejo muito bem onde ajude, até porque os processos (pelo menos em Portugal) não são do domínio público. É que para aceitação, tem de se saber que determinada pessoa é transexual. Se não se sabe, nada feito. E não acredito que as pessoas transexuais andem por aí a mostrar a documentação e a avisar “mas atenção que sou transexual”. Dignidade e ajuda, deram, mas aceitação não vejo onde.
A segunda pergunta era mais ou menos o que se poderia fazer para melhorar as leis existentes nos dois países.
Júlia, e foi uma surpresa, defendeu inovar as leis para uma semelhante ou igual à lei argentina. Surpresa porque, como é sabido, a sua posição (bem como do GRIT e da ILGA) tem sido a contrária à despatologização. E ver agora uma pessoa que tem defendido a patologização a defender uma lei despatologizante foi uma surpresa. Agradável, finalmente, e que cria condições para um futuro trabalho conjunto (embora não seja muito costume da ILGA trabalhar em conjunto com outros grupos ou associações nos temas trans, excepção feita à rede ex-aequo que tem sido a única a trabalhar em conjunto, vá-se lá saber porquê).
Carla falou muito do bom que é cada vez existirem leis mais e mais avançadas e como eram um exemplo umas para as outras e um incentivo. Pelo menos foi isto que apanhei do castelhano. Basicamente.
José Soeiro mencionou, como ex-legislador, que a lei portuguesa, na sua concepção, tinha sido feita não para a existência de listas de médicos autorizados a passarem diagnósticos, mas precisamente para o seu contrário. Defendeu que cada médico (como no caso das certidões de óbito) deve ser eticamente responsável pelo que assina. O Dr Décio não aguentou e defendeu a posição médica afirmando que foram as conservatórias a questionar quem podia passar os ditos diagnósticos de transexualidade. Sobre isto já me pronunciei muitas vezes. Os sectores mais conservadores da classe médica (os mesmos que dizem que transexuais são só quem se quer operar, que homem que é homem não quer engravidar e outras bacoradas similares) conseguiram forçar a inclusão na lei da “equipa multidisciplinar de sexologia clínica” e isto é que deu azo às dúvidas das conservatórias. Bem entendido, para o bem e defesa das pessoas transexuais, segundo eles. Não posso deixar de pensar no veto presidencial à lei, que também era para o bem e defesa as pessoas transexuais, e como no Porto, no Simpósio Identidade de Género e Transexualidade, em que fui a única trans a defender a despatologização e que vários médicos mostraram posições contrárias, dizendo que os processos e os requisitos para o diagnóstico eram, também, para o bem e defesa das pessoas transexuais, e em que eu falho em ver, por exemplo, como é que a exigência de divórcio da parte de quem se submeta a este processo, em vigor quando eu iniciei o meu processo (ignoro se ainda se encontra em vigor) é para o bem de qualquer pessoa transexual. Isto para só dar um exemplo.
Outra pergunta focou o período do Real Life Test, que é exigido na lei espanhola mas não na portuguesa. E aqui deu erro. Da maneira que a pergunta se encontrava feita dava a impressão de que os dois anos do Real Life Test não são exigidos em Portugal, o que é falso. Essa exigência não se encontra na lei portuguesa porque faz parte dos requisitos médicos para o diagnóstico de transexualidade. E a lei portuguesa não é uma lei sobre transexualidade, mas só sobre a alteração da documentação legal. Logo não fazia sentido entrar-se nos requisitos médicos para os relatórios. Mas o facto de não estar na lei não implica que esses dois anos não se apliquem em Portugal. Teoricamente nenhuma pessoa transexual pode obter o diagnóstico sem passar por esses dois anos.
Dois anos para o Real Life Test é simplesmente demasiado. Seis meses bastam, e já existe quem defenda esta redução. Eu, por exemplo, já me tinha assumido publicamente quase ano e meio antes de iniciar o meu processo e quando o iniciei já fazia tratamento hormonal também.
Carla falou sobre isto, mas ou não disse nada de relevante ou eu não apanhei castelhano suficiente para escrever qualquer coisa nos meus apontamentos. Mea culpa.
Pergunta seguinte: outras políticas necessárias, como a inclusão da identidade de género no artº 13º da Constituição. Coisa que eu, já em 2006, na marcha pride, juntamente com as Panteras Rosa, exigia numa faixa como necessário e essencial. Afinal temos a orientação sexual inserida, porque razão não deve estar lá a identidade de género. Mais, expressão de género também.
José Soeiro mencionou também o muito que falta fazer a nível de legislação laboral e numa educação sexual inclusiva, ponto para mim fulcral para se começar a acabar com a discriminação LGBT.
Pergunta seguinte, como combater a abusiva intromissão da Ordem dos Médicos nos processos?
Júlia falou que se tem de combater, sim, mas depois da intervenção dela fiquei sem saber como o quer fazer. Ou ela não disse ou eu não percebi. Em todo o caso, no simpósio do Porto ficou bem patente que até médicos que fazem parte da comissão na Ordem concordam em que ela não tem razão para existir. Pelo menos no momento presente. Pode já ter tido a sua razão de existir, por exemplo, para maior aceitação dos sectores mais conservadores dos processos, tratamentos hormonais e cirurgias, mas hoje em dia é mais uma demora (de muito tempo) em processos que se querem céleres.
Pergunta seguinte: despatologização. Não apontei o enunciado mas basicamente era para cada um dos oradores demonstrar a sua posição e qual o grau de prioridade. Ou quem quisesse, já não me recordo bem. José Soeiro apoia a despatologização, é do conhecimento público. Júlia Pereira não apoiava, também é do conhecimento público. E digo não apoiava porque ao dar o seu apoio a uma lei de identidade como a da argentina, totalmente despatologizante (e despsiquiatrizante) ficou numa posição um bocado dúbia. Até ao fim esta dúvida não me ficou esclarecida.
A Carla, também é (ou devia ser) do conhecimento público, uma apoiante da campanha STOP Patologização trans. E como tal considerou a despatologização como um assunto prioritário. Afirmou que a transexualidade não é doença, defendeu a liberdade individual nos processos, ou seja, cada pessoa deve ter a liberdade de levar o seu processo até onde muito bem entenda (aqui eu entendi que seria mais referente à parte cirúrgica), e que em vez de ser considerada uma patologia devia ser considerada como uma situação de saúde.
E deu como exemplo a gravidez. Agora um pequeno áparte: por volta de 2006, eu conversava com amigos (activistas e não-activistas) sobre os porquês da transexualidade ser considerada uma doença. E dava como exemplo precisamente a gravidez. E levava de todos por citar este exemplo. Que não seria compreendido nem aceite pela sociedade, que não devia de ir por aí, etc etc etc. Bem, e eu considerei essas opiniões e nunca usei esse argumento. Descobri outros, claro, mas este, tão óbvio, nunca o usei. E agora, ao ver tanta gente a usá-lo, fico com uma sensação meio estranha.
Passando à frente, pergunta seguinte: despatologização ou despsiquiatrização? Não consegui apanhar nada. Ou os intervenientes não foram claros nas suas alocuções ou eu não as entendi correctamente.
Última pergunta: como classificar então a transexualidade de um modo não patologizante? Não ouvi nenhuma opinião, falaram mas não apresentaram nenhuma proposta. A única coisa que apanhei (e nem me lembro de onde veio) foi incluir na medicina preventiva. A lógica escapou-me. Mas aqui tenho eu uma: a transexualidade deve ser classificada internacionalmente como uma Condição médica (Medical condition). E o que são as condições médicas? São simplesmente casos que necessitam de intervenção médica mas que não são considerados como doenças. Assim libertamo-nos do estigma da doença (e do ainda mais grave doença psiquiátrica) sem se perder o direito ao acesso a tratamentos e cirurgias.
De seguida foram as declarações, comentários e perguntas da assistência. E aqui, mais uma vez, não posso deixar de citar a intervenção do Dr. Décio, que muito agradavelmente nos comparou, quando dizemos que a nossa identidade de género é a oposta à nossa genitália, aos D. Quixotes e Napoleões. Para defender a patologização e a psiquiatrização, entenda-se. Lendo o que ele disse, entreve-se o que não disse. Que tal como os Napoleões e D. Quixotes somos mas é todos malucos, mas que no caso da nossa maluqueira, podem-se fazer cirurgias e tratamentos hormonais. Não o diz, mas está implícito no seu discurso.
Mas não se ficou por aqui. Entre outras coisas, afirmou que o tempo dos processos se deve à despistagem de outras patologias, como a esquizofrenia (que adooora usar como exemplo) e que a transexualidade provoca mal estar, logo é doença.
Bem, e eu que pensava que o tempo gasto nos processos era para o diagnóstico do transtorno de identidade de género fiquei a saber que é meramente uma despistagem da esquizofrenia. E esta, hein? Obviamente que as repercussões deste pensamento leva-nos a questionar o que andamos lá a fazer anos e anos? Quer dizer, a esquizofrenia não demora assim tanto a ser diagnosticada. Nem de perto nem de longe. O que implica que andamos anos e anos a encher bonés. O que implica que os médicos que nos “tratam” não sabem nem podem diagnosticar a transexualidade. Como eu sempre disse, o que fazem é demorar e complicar o mais que podem. Se uma pessoa aguenta tudo, então deve de ser. Pum. E com isto demoram, como já aconteceu, 5, 7 e dez anos.
Em relação ao mal estar, eu gostaria de ter perguntado (na altura) ao Dr o seguinte: sou desempregada de longa duração e isso provoca-me mal estar. A que especialidade me devo dirigir para me curarem? (e como cura entenda-se arranjar-me trabalho). Sabe-se qual a causa e qual o remédio, mas não sabemos (desempregados) a que especialidade devemos pedir consulta.
Para abrilhantar mais a coisa, e como é usual, afirmou que a transexualidade é uma malformação congénita. Sem provas, claro está, somente por exclusão de partes. Pena que na exclusão de partes não tenha excluído a condição médica (que nem mencionou), adorava ouvir a lógica.
E para afirmar que a transexualidade deve continuar debaixo da alçada dos psiquiatras e psicólogos, deu o exemplo de um trans que obteve o relatório rápido demais (portanto mal diagnosticado) e que não esteve para esperar pelas cirurgias e foi à Indonésia. E depois arrependeu-se e chegou à conclusão de que afinal era gay. Segundo ele, este caso está em tratamento agora.
O bom destas coisas é que se pode afirmar o que se quiser que nunca se pode comprovar nada. O sigilo médico assim o faz. Nem é preciso pois Carla, na sua interpelação final, rebateu magistralmente este argumento com a liberdade. A liberdade pessoal que cada um de nós tem de cometer erros, erros esses que muitas vezes nos podem custar a vida. E deu como exemplo uma pessoa que vá praticar parapente, por exemplo, e que o parapente se rasgue e caia para a morte. Eu lembrei-me de outro: aquelas pessoas que se casam com alguém e que depois descobrem que o casamento foi um erro. E quantas vezes este erro não custa a vida, nomeadamente a mulheres? Era giro, por exemplo, iniciarem-se processos psiquiátricos de casamentos. Quem quisesse casar tinha de passar por consultas psiquiátricas e psicológicas para se ver se efectivamente estavam em sintonia ou se havia risco de existir violência doméstica no futuro. O Dr deve também defender isto, não? E porque não processos psiquiátricos a governantes? Esta linha de pensamento dá para muita coisa.
Falou-se também das cirurgias em Coimbra, onde segundo Júlia Pereira não estão a ser realizadas, no tempo de demora dos processos (José Soeiro), mas nada assim que merecesse apontamento.
Salvo, para finalizar, uma declaração de Nuno Pinto a dizer que não se encontra em lado nenhum (DSM e CID, entenda-se) a transexualidade como doença mental. Argumento que classifico como um bocado naive. Não é necessário estar explicitamente escrito “A transexualidade É uma doença mental”. Basta encontrar-se nos capítulos das doenças mentais, e melhor, basta encontrar-se no DSM, que é o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, que engloba tudo, doenças e perturbações (para quem diga que perturbação não é doença). Portanto não está escrito mas está implícito.
E a menção da intervenção final de Côrte-Real, que serviu para me deixar muitas dúvidas sobre qual a posição da ILGA em relação à transexualidade. Até agora tem sido uma posição patologizante e psiquiatrizante que, apesar de dizer que é para o bem das pessoas transexuais, não o é na realidade. O facto de trazer Carla Antonelli a Portugal para este debate e o facto de Júlia Pereira ter defendido publicamente uma lei despatologizante como a da Argentina parecem indicar uma mudança de posições da ILGA e do GRIT. A intervenção de Côrte-Real deixou a sensação de uma manutenção de posições. E assim o evento acabou sem uma tomada de posição clara e inequívoca por parte da ILGA.
E o evento terminou. Carla Antonelli ainda ficou mais um bocado para quem quisesse falar com ela, e eu fui para casa (sentia que era estranho aparecer à Carla e dizer “Olá, não nos conhecemos de lado nenhum mas eu também sou activista”, afinal os activistas estavam na mesa, digo eu).
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