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sábado, abril 05, 2014

De consensos e manifestos




No dicionário Priberam online, manifesto é: “Exposição (geralmente escrita) em que se manifesta o que é preciso, ou o que se deseja que se saiba.” entre outras definições que não interessam para o caso.

Vem isto a propósito de reuniões para a elaboração de um manifesto comum a várias associações e/ou grupos. Façamos um exercício de imaginação:

Imaginemos várias associações/grupos que se reúnem para a elaboração de um manifesto comum sobre temas LGBTI, por exemplo. Cada uma delas apresenta o que considera ser importante e/ou prioritário. Assim, o manifesto será uma reunião de todos os temas apresentados num único documento.

Por exemplo, grupo(s) trans apresentam a despatologização, inserida numa lei integral de identidade de género, outros grupos apresentam, por exemplo o fim da exclusividade das relações monogâmicas, outros ainda apresentam a adopção, outros uma educação sexual inclusiva, e mais exemplos poderiam ser dados.

Agora chega-se ao cerne da questão. Cada grupo não tem, em nome de uma suposta consensualidade, de se opor às reivindicações dos outros grupo. O que há a fazer é, para que o dito manifesto não seja demasiado extenso, tentar-se diminuir o seu tamanho, negociando determinados pontos que podem talvez ser obliterados no manifesto comum, mas unicamente por razões de divulgação (leia-se extensão).

Na minha opinião dá-se demasiada importância ao manifesto. Por exemplo, e agora na realidade e não na imaginação, falando sobre o manifesto da MOL, o feed back do dito nos media é nulo ou quase. Mesmo nos participantes, poucos são os que sabem o que se reivindica, tirando aqueles temas que os media não censuram, como a parentalidade. O resto dos temas são completa e eficazmente obliterados pelos media, que se transformam de veículos de comunicação em censores da moral pública.

A juntar a esta deliberada censura mediática (ou parte dela) temos também o apagamento dos grupos que não são mediáticos (como a ILGA Portugal ou as Panteras Rosa) pois os restantes nem são entrevistados como grupos reivindicativos mas unicamente como participantes curiosos.

Por exemplo, as Panteras Rosa há anos que vêm reivindicando a despatollgização da transexualidade, mesmo quando eu ainda não a apoiava por ter dúvidas sobre determinados aspectos, já focados em notas anteriores ou posts no meu blogue. Nos media qual o feed back desta luta? Nulo ou quase, Ninguém fala em temas que não sejam a parentalidade homossexual, que veio substituir o casamento homossexual.





Mas voltando ao campo da imaginação, como eu dizia, o papel dos grupos não é censurarem também as reivindicações dos outros grupos em nome de uma falsa “consensualidade” Mais até as devem apoiar, em nome da tão famosa diversidade, que pelos vistos não se quer tão diversa como isso.

Assim, por exemplo, em nome dessa consensualidade decidem eliminar, por exemplo, a despatologização ou o poliamor. Péssima politica. Imaginem que, por exemplo, um dos grupos não concordava com o tema da parentalidade. deveria esse tema ser obliterado do manifesto em nome de uma suposta consensualidade? Claro que não, seria estúpido demais. E no entanto…

Continuemos a imaginar que um dos grupos tinha esta posição, nada de despatologização ou de poliamor. Quanto ao poliamor, as razões não são difíceis de imaginar. Apesar do poliamor ser um assunto equivalente ao casamento homossexual, não é difícil de imaginar que será um assunto, se não tabu, pelo menos muito incómodo para ser associado à comunidade LG. Já imaginaram? Comentários tipo “esses panilas agora querem em grupo, é uma rebaldaria, uma imoralidade, etc, etc, etc.”

Assim, em nome da mesma falsa moralidade que (ainda) condena a homossexualidade ou o trabalho sexual, decidem apagar este tema tão controverso. A ver se assim mostram uma imagem mais de acordo com a sociedade em que se inserem para que a parentalidade homossexual possa obter mais apoiantes, tipo “afinal até nem são tão depravados, apoiam a monogamia, até pode ser que eduquem bem as crianças”.

Agora imaginemos a argumentação para a despatologização. Por exemplo :
a lei existente já é uma das mais despatologizantes do mundo pois não inclui a obrigatoriedade de qualquer tratamento médico, nem a obrigatoriedade de esterilização,
os critérios do diagnóstico, de entre os diferentes critérios clínicos, é de facto o menos violador da autonomia das pessoas trans ,
a lei da Argentina tem vindo a revelar algumas especificidades problemáticas (a questão de menores, nomeadamente crianças, por exemplo),
a proposta Dinamarquesa que está em cima da mesa inclui um compasso de espera de 6 meses (quando a LIG Portuguesa permite o reconhecimento legal em poucos dias),
poderá ser muito arriscado reivindicar uma revisão da LIG com este governo no poder, poderá ter como consequência um grave retrocesso.

É de fazer rir até às lágrimas logo a primeira afirmação. Dizer-se que uma lei que obriga que uma pessoa seja avaliada psicologicamente duas vezes (são necessários dois relatórios médicos positivos prévios) para se chegar à declaração que a lei menciona, é despatologizante é, no mínimo, caricato. Dizer-se então que esta lei é das mais despatologizantes da europa é ridículo. A juntar a isto uma grande maioria de “especialistas” que “tratam” estes casos ainda pensam que só é transexual que deseja fazer a cirurgia de correcção de sexo. Não se pode esquecer que uma coisa é uma lei no papel, outra é a realidade da prática. Assim é uma afirmação ilariante ou uma clara demonstração de que nem sabem do que estão a falar. Por mais que uma pessoa se esforce, é difícil imaginar esta como uma das leis mais despatologizantes do mundo. Além de que a lei existente em Portugal não é uma lei de identidade de género mas uma lei de alteração de nome e sexo na documentação legal.

Os critérios de diagnóstico, da parte da grande maioria dos “especialistas”, violam claramente as recomendações da wpath, por exemplo, além do que já referi atrás, pois a wpath recomenda a aceitação sem reservas da identidade de género de cada pessoa, independentemente de cirurgias ou tratamentos. Em Portugal não é isto que se passa, nem de perto nem de longe. Como é que uma avaliação baseada em conceitos falseados não constitui uma evidente e clara violação dessa autonomia? Como é que forçar as pessoas a subneterem-se a consultas não é uma violação da autonomia das pessoas trans? Como é que forçar as pessoas a cirurgias contra a sua vontade (ou a sua identidade de género não lhes é reconhecida) não é uma violação? Ou só é considerada autonomia aquilo que vai de encontro aos preconceitos médicos?

Quanto à lei argentina, mesmo com os problemas com as crianças trans, a implantação de uma lei similar aqui seria uma melhoria gigantesca. No mínimo, as crianças trans ficavam na mesma, como já estão, pois só se pode iniciar um processo se se é adulto ou com autorização dos pais. Além de que esperar-se por uma lei que seja "o exemplo absoluto” é uma completa imbecilidade. Se se esperasse por isso, ainda estávamos nos tempos da homossexualidade ser considerada uma doença, pois ainda não era contemplada a parentalidade e outras lutas futuras.

Quando da inclusão da homossexualidade no artº 13º da Constituição Portuguesa, as associações presentes decidiram excluir a identidade de género da dita inclusão, com o argumento de que os deputados apoiariam essa inclusão se a identidade de género fosse excluída, com o protesto das trans presentes na altura. Um evidente caso em que se preferiu não esperar por um “exemplo absoluto” de perfeição. Nessa altura o “exemplo absoluto” não interessava, pois tratava.se de pessoas trans. Agora, e pelo mesmo motivo, parece que já interessa, e muito, tanto que até nem querem uma lei melhor, só uma que seja perfeita.

Seria interessante saber-se qual a posição se, quando da despatologização da homossexualidade, este argumento tivesse aparecido. Muito provavelmente já não interessava outra vez.

Falar-se em detrimento de uma espera de seis meses, quando em Portugal são no mínimo dois anos de avaliações para os dois relatórios necessários para se obter a declaração de que a lei fala para se poder alterar a documentação é, no mínimo, caricato. Seis meses é muito na Dinamarca mas em Portugal dois anos não o são. Muito curiosa esta.

Todos os anos se reivindica algo. É perigoso reivindicar-se a despatologização com este governo, mas não o é reivindicar-se a parentalidade. Por esta ordem de ideias, enquanto este governo (ou seja, a direita) estiver no poder o melhor é não se reivindicar nada, nem direitos humanos, nem direitos laborais, sociais e outros que tais, ficarmos caladinhos e quietinhos ou levamos no focinho (como aquela música dos trabalhadores do comércio). É por este tipo de pensamento que ainda estamos a levar com este governo em cima. Além de que, quando da aprovação da lei existente, já nas marchas se lutava pela despatologização. Já o ano passado, com este governo, se lutava por isso. E no ano anterior. A despatologização é apoiada pela ILGA Europe e pela Transgender Europe, para nomear só dois exemplos.

Não é crível que um manifesto per si obrigue a assembleia a debruçar-se sobre estes assuntos de imediato. Para isso já existe a petição da Isilda que a funcionar vai inevitavelmente rever estes assuntos. Portanto se vier a acontecer um retrocesso, não será certamente por uma reivindicação num manifesto mas mais pela petição.

Chegamos assim ao ponto em que um grupo se torna uma força de bloqueio em vez de uma força impulsionadora da mudança. Ao ponto em que, à semelhança do passado, um grupo não se importa em pisar as reivindicações de outros grupos para “levar a brasa à sua sardinha”. Um péssimo exemplo do que é o activismo em Portugal.

Chega assim ao fim este exercício de imaginação misturado com a realidade (a petição da Isilda Pegado existe mesmo.) A fazer pensar, não?