[Portugal]
Transexuais André, Ivo e Diniz não querem engravidar
Jornal Público – Edição Impressa – Caderno P2 de 15.06.2008, por Andreia Sanches
O bebé deverá nascer a 3 de Julho. Thomas Beatie, um norte-americano do estado de Oregon, vai ser mãe. O P2 falou com três transexuais portugueses que acompanham o caso com um misto de expectativa e dúvida. "Este corpo de mulher não é meu", diz um deles. Mas a questão ultrapassa o caso de Beatie e coloca-nos perante os limites de ser homem ou mulher
A notícia correu mundo. "Sou um transgénero, legalmente homem, legalmente casado" e "engravidei". Foi assim que Thomas Beatie, 34 anos, se apresentou num artigo escrito na primeira pessoa na edição de Março da revista norte-americana The Advocate. E o mundo ficou chocado. Mesmo entre a comunidade transexual as opiniões dividem-se. "Eu nunca seria capaz de engravidar", diz André, um professor de 28 anos que vive em Lisboa.
André também nasceu com corpo de rapariga. Mas desde que se lembra de existir "queria ser um menino de verdade, como o Pinóquio". Quando andava na catequese, "escrevia cartinhas ao Menino Jesus e pedia-lhe que o transformasse num rapaz." Hoje ri-se. "O Menino Jesus não me ligava."
Já se submeteu a várias cirurgias e em Novembro fez uma histerectomia: "Foram-me removidos os ovários, o útero, a vagina. Foi mais uma etapa num processo que já leva quase sete anos e que está quase a chegar ao fim." Ter filhos biológicos foi algo que nunca ponderou.
"Antes de iniciar o processo de reatribuição de sexo a minha namorada da altura falou-me da possibilidade de procurar uma clínica, guardar os meus óvulos, para mais tarde implantar no útero dela e termos um filho", conta. E faz um esgar. "Disse-lhe que nem pensar! Não era capaz de guardar algo que era feminino, que era o que eu renegava desde sempre."
Thomas Beatie fez mais do que isso: manteve intactos os seus órgãos reprodutores. Nancy, a sua mulher, não podia engravidar. E por isso deu ele esse passo, recorrendo a uma inseminação artificial feita em casa, com a ajuda de uma seringa. O bebé, uma menina, deverá nascer por cesariana a 3 de Julho. Beatie diz que se sente "fantástico".
André, Diniz e Ivo (todos pediram para não ser identificados pelos nomes verdadeiros) são três transexuais que vivem em Lisboa. E que pouco mais parecem ter em comum. São pessoas muito diferentes entre si - Diniz tem um olhar triste e tímido, Ivo é expansivo e tem uma energia inesgotável, André fala com sorriso meigo e tranquilo - com opiniões distintas sobre as notícias que têm lido sobre o mais mediático habitante de Bend, no estado de Oregon.
À espera de uma estável
André, um homem bonito, de cabelo curto e barba aparada, divide um apartamento com amigos. No seu quarto há um sofá confortável, objectos de artesanato espalhados sobre uma mesa e um mapa-múndi na parede. Quando não houver mais cirurgias para fazer, conta, quer viajar, eventualmente trabalhar algum tempo em África.
Adoptar - de preferência mais do que uma criança - faz parte dos seus planos. A sua futura mulher pode sempre recorrer a um dador anónimo e fazer uma inseminação artificial, diz. Seja como for, ser pai é um plano para concretizar mais tarde, quando conseguir ficar colocado a tempo inteiro numa escola, a fazer o que mais gosta - dar aulas a alunos do 1.º ciclo do ensino básico - com um salário decente.
Há outra condição: a relação com a namorada, uma rapariga de cabelos claros que acaba de se despedir dele para ir trabalhar, revelar-se estável. "O ideal é que uma criança seja criada pelo pai e pela mãe." Afinal, André cresceu numa família grande, com muitos irmãos, "todos muito unidos". E a união manteve-se mesmo quando, já na faculdade, anunciou que a última e desesperada tentativa que tinha feito para assumir um papel de mulher - inscrevendo-se na tuna feminina da escola - tinha falhado. Mudou-se para a tuna masculina.
Apesar das dúvidas que o caso Beatie lhe suscita, mantém uma atitude tolerante. "Procuro respeitar as opções dos outros. Sei que a mulher dele não podia ter filhos e ele pode ter posto em segundo plano o seu bem-estar para dar essa alegria aos dois. Também sei que há transexuais que não fazem a cirurgia genital, como o Thomas, e que conseguem viver bem assim. Mas eu não."
Em Abril, o "homem grávido", como sempre é anunciado, foi ao talk show com maior audiência da televisão norte-americana, The Oprah Winfrey Show. Deixou-se filmar a fazer uma ecografia e o mundo pôde ouvir o coração do bebé.
Nos fóruns online sucederam-se as reacções. Muitas negativas. "Isto é imoral e perturbador", comentava um leitor no blogue do diário Washington Post. "Isto é uma farsa, ele não passa de uma mulher", escrevia outro.
Nas últimas semanas, foi-se sabendo mais sobre a sua vida. Beatie chamava-se Tracy Lagondino, era modelo e chegou a participar no concurso Miss Teenager Havai. Há dez anos, iniciou a terapia hormonal (injecções regulares que interrompem a ovulação, fazem a voz engrossar, aumentam o número de pêlos no corpo), fez uma cirurgia para remoção das mamas, alterou o seu assento de nascimento. Legalmente, passou a ser um cidadão do sexo masculino. Casou. Abriu uma loja de t-shirts.
Nunca se submeteu a uma cirurgia de reatribuição de sexo (que aproveita os tecidos genitais existentes e converte-os na genitália do outro sexo), por isso, quando decidiu engravidar, bastou-lhe interromper as injecções de hormonas. E procurou um banco de esperma.
O que é um transexual?
Santinho Martins, endocrinologista aposentado do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, tratou dezenas de transexuais e tem as maiores dúvidas sobre se Beatie pode ser considerado um transexual.
Na biblioteca do Júlio de Matos, o professores recorre aos critérios usados para diagnosticar a mais extrema perturbação da identidade de género, definidos no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais da American Psychiatric Association: "Um transexual é alguém com uma persistente identificação com o outro sexo, com o desejo de ser do outro sexo, que se faz passar por ele ou que tem a convicção de que tem as sensações e as reacções típicas do outro sexo... A minha pergunta é: então como é que este Thomas Beatie tem uma reacção de maternidade? Será que é mesmo um transexual? Na minha opinião, não. Os homens não querem engravidar."
É também estranho, para o endocrinologista, que alguém faça uma ablação mamária, fique com a vagina e diga que é um homem. "E foi isso que ele fez. Eu sei que esta minha opinião não é consensual." E não é.
O site da Ilga Portugal (associação de Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero), por exemplo, não deixa dúvidas sobre o que entende como transexualidade: todas as pessoas "que já vivem, ou pretendem viver, no papel social do género oposto àquele que lhes foi atribuído ao nascimento, são consideradas transexuais", não sendo "relevante que a pessoa ainda não tenha feito, ou não planeie fazer, a cirurgia.
Diniz, 30 anos, nunca quis ter filhos. Biológicos, ou não. Foi uma criança triste e um adolescente isolado que, mesmo no Verão "com um calor insuportável", saia à rua de casaco para esconder as formas femininas. "Sempre achei que o meu corpo era um erro. Pensava que passava, mas com a puberdade agravou-se."
Aos 13 anos, leu uma reportagem sobre transexuais. "Fiquei a perceber que havia pessoas que não se identificavam com o seu sexo, que não eram homossexuais, que eram transexuais... fiquei a saber que havia um nome para aquilo que sentia." A partir daí, "só pensava que tinha que aguentar até ter dinheiro para fazer a operação." Nesse tempo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ainda não cobria as despesas.
Agora é chegado o momento. Diniz já "passou" a avaliação psicológica que é exigida a quem quer submeter-se a uma mudança de sexo - pelo menos, dois anos de exames para confirmar o diagnóstico de transexualismo. Está a fazer terapia hormonal. "Para mim a questão de manter o útero, os ovários, nem sequer se coloca."
Se calhar, diz baixinho, "é egoísmo". Mas agora que está prestes a mudar o seu corpo quer aproveitar ao máximo a vida, arranjar um trabalho melhor (está num call center), ser feliz. "E quando se tem filhos, acaba-se por viver quase exclusivamente para eles..."
Contudo, a escolha de Thomas Beatie não o perturba, tão pouco a questiona. "Ele tem todo o direito a ter filhos biológicos, nenhuma dúvida se me coloca. Desde que o bebé esteja bem." Mais: "Acho que se pudessem, alguns homens biológicos gostariam também de engravidar."
O limite é não ter filhos
Ivo, 20 anos, estudante de Psicologia, encara a questão com alguma angústia. Este rapaz bem-disposto e musculado, que passa horas no ginásio "a gastar energia", que vive com os pais, uma cadela e dois gatos e levou os últimos dois anos da sua vida a tentar explicar à família o que se passa com ele, tem uma certeza: "Sei que outras pessoas se calhar não vão concordar, mas um transexual nunca será realmente feliz."
Porquê? "Porque nunca seremos um homem (ou uma mulher, conforme o caso) como realmente seríamos se tivéssemos nascido biologicamente assim. E isso afecta-me bastante. Posso fazer todas as cirurgias, haverá sempre limites. E um dos limites é não poder ter filhos."
Desde os sete anos que Ivo se apresentava aos novos amigos que ia fazendo como rapaz, apesar de ter nascido rapariga. Desde essa altura que namorisca outras raparigas, muitas vezes mentindo-lhes - e muitas vezes sendo desmascarado. "Um dia, nas férias do Verão, apareceu uma menina à porta da nossa casa a pedir para falar com o Ivo e foi uma grande confusão, porque a minha mãe explicava-lhe que lá em casa só havia uma Iva."
Sempre pensou em crianças. "Em pequeno os meus colegas diziam: 'quero casar e ter filhos'. Eu dizia que queria adoptar." Mas só anos depois viria a confrontar-se, de facto, com a questão. E foi por causa de uma rapariga.
"Não chegámos a envolver-nos por pouco, eu gostava dela. Ela não sabia da minha situação. Para ela, eu era o Ivo e já tinha nascido Ivo. Uma vez houve uma conversa, ela disse-me que queria ter filhos... acho que foi a primeira vez que senti realmente o que era não poder ter tê-los", diz. "E é complicado."
"O que raio se passa?"
Quando ouviu a história de Thomas Beatie, a primeira reacção de Ivo foi: "O que raio está a passar-se aqui?"
Não é que seja "preconceituoso", assegura. "Estou aberto a diferentes formas de transexualidade." Mas preocupa-lhe a criança que vai nascer: "Há várias teorias que apontam para a possibilidade da transexualidade ter um fundo genético. Será que esta criança pode vir a ser transexual? Na sociedade em que vivemos, ser transexual é algo extremamente negativo. Sei que se tivesse um filho transexual ele iria passar por muitas coisas que eu não queria que ele passasse."
Há também quem questione a mediatização que Beatie deu ao caso. Jamison Green, um activista transgénero, diz na edição de Abril da revista The Advocat que conhece outros transexuais que tiveram filhos, mas que nenhum se expôs desta forma. "Será que toda esta publicidade não vai prejudicá-los [a Thomas e a Nancy] ou à criança?"
A André também faz confusão a forma como o norte-americano se expôs. Mais pelo facto dele exibir o seu lado feminino, quando supostamente o devia rejeitar, do que pelo impacto que a história de vida de Thomas terá na criança. "Um dia, quando tiver os meus filhos, também não lhes vou esconder o meu passado."
Certo é que o caso promoveu o debate sobre a transexualidade. Em Portugal, há muito que a Ilga reivindica uma Lei de Identidade de Género - semelhante à aprovada em Março do ano passado em Espanha e que veio permitir às pessoas transexuais a mudança de nome e de sexo no registo civil. Até que tal legislação exista, diz a Ilga, os portugueses transexuais continuarão a ter que recorrer aos tribunais para pedir a alteração do seu nome e sexo no seu registo e a sujeitar-se à discricionariedade de juizes.
Para além da obrigatoriedade da cirurgia genital, não ter tido filhos e ser irreversivelmente estéril têm sido alguns dos pressupostos exigidos pelos tribunais. André fala de "atentado aos direitos humanos". Santinho Martins admite que algumas destas imposições são "de uma grande violência".
A todos os seus doentes, contudo, repetiu o mesmo discurso: uma vez feita a cirurgia, não há retorno, a esterilidade é irreversível.
Preservar o esperma (no caso dos que nasceram fisicamente homens, mas têm "um cérebro do sexo oposto"), ou os ovócitos (no caso dos que vieram ao mundo com órgãos de mulher), são duas técnicas viáveis que permitem a um transexual sonhar ter filhos biológicos, como confirma Mário Sousa, especialista em reprodução assistida. Há quem já o tenha feito, mas não é tema de que se fale abertamente. Precisamente por medo das consequências legais. Ou seja, diz Santinho Martins, "há sempre soluções" para ter filhos biológicas. Mas os tribunais não podem saber.
Ivo prefere adoptar. Duas crianças - é o seu plano. Engravidar nunca esteve em cima da mesa. "Existe um conceito do que é ser homem e do que é ser mulher e na minha cabeça essa informação existe. Este corpo de mulher não é meu. E engravidar é uma coisa de mulheres." Thomas Beatie acha que não.
Jornal Público – Edição Impressa – Caderno P2 de 15.06.2008, por Andreia Sanches
O bebé deverá nascer a 3 de Julho. Thomas Beatie, um norte-americano do estado de Oregon, vai ser mãe. O P2 falou com três transexuais portugueses que acompanham o caso com um misto de expectativa e dúvida. "Este corpo de mulher não é meu", diz um deles. Mas a questão ultrapassa o caso de Beatie e coloca-nos perante os limites de ser homem ou mulher
A notícia correu mundo. "Sou um transgénero, legalmente homem, legalmente casado" e "engravidei". Foi assim que Thomas Beatie, 34 anos, se apresentou num artigo escrito na primeira pessoa na edição de Março da revista norte-americana The Advocate. E o mundo ficou chocado. Mesmo entre a comunidade transexual as opiniões dividem-se. "Eu nunca seria capaz de engravidar", diz André, um professor de 28 anos que vive em Lisboa.
André também nasceu com corpo de rapariga. Mas desde que se lembra de existir "queria ser um menino de verdade, como o Pinóquio". Quando andava na catequese, "escrevia cartinhas ao Menino Jesus e pedia-lhe que o transformasse num rapaz." Hoje ri-se. "O Menino Jesus não me ligava."
Já se submeteu a várias cirurgias e em Novembro fez uma histerectomia: "Foram-me removidos os ovários, o útero, a vagina. Foi mais uma etapa num processo que já leva quase sete anos e que está quase a chegar ao fim." Ter filhos biológicos foi algo que nunca ponderou.
"Antes de iniciar o processo de reatribuição de sexo a minha namorada da altura falou-me da possibilidade de procurar uma clínica, guardar os meus óvulos, para mais tarde implantar no útero dela e termos um filho", conta. E faz um esgar. "Disse-lhe que nem pensar! Não era capaz de guardar algo que era feminino, que era o que eu renegava desde sempre."
Thomas Beatie fez mais do que isso: manteve intactos os seus órgãos reprodutores. Nancy, a sua mulher, não podia engravidar. E por isso deu ele esse passo, recorrendo a uma inseminação artificial feita em casa, com a ajuda de uma seringa. O bebé, uma menina, deverá nascer por cesariana a 3 de Julho. Beatie diz que se sente "fantástico".
André, Diniz e Ivo (todos pediram para não ser identificados pelos nomes verdadeiros) são três transexuais que vivem em Lisboa. E que pouco mais parecem ter em comum. São pessoas muito diferentes entre si - Diniz tem um olhar triste e tímido, Ivo é expansivo e tem uma energia inesgotável, André fala com sorriso meigo e tranquilo - com opiniões distintas sobre as notícias que têm lido sobre o mais mediático habitante de Bend, no estado de Oregon.
À espera de uma estável
André, um homem bonito, de cabelo curto e barba aparada, divide um apartamento com amigos. No seu quarto há um sofá confortável, objectos de artesanato espalhados sobre uma mesa e um mapa-múndi na parede. Quando não houver mais cirurgias para fazer, conta, quer viajar, eventualmente trabalhar algum tempo em África.
Adoptar - de preferência mais do que uma criança - faz parte dos seus planos. A sua futura mulher pode sempre recorrer a um dador anónimo e fazer uma inseminação artificial, diz. Seja como for, ser pai é um plano para concretizar mais tarde, quando conseguir ficar colocado a tempo inteiro numa escola, a fazer o que mais gosta - dar aulas a alunos do 1.º ciclo do ensino básico - com um salário decente.
Há outra condição: a relação com a namorada, uma rapariga de cabelos claros que acaba de se despedir dele para ir trabalhar, revelar-se estável. "O ideal é que uma criança seja criada pelo pai e pela mãe." Afinal, André cresceu numa família grande, com muitos irmãos, "todos muito unidos". E a união manteve-se mesmo quando, já na faculdade, anunciou que a última e desesperada tentativa que tinha feito para assumir um papel de mulher - inscrevendo-se na tuna feminina da escola - tinha falhado. Mudou-se para a tuna masculina.
Apesar das dúvidas que o caso Beatie lhe suscita, mantém uma atitude tolerante. "Procuro respeitar as opções dos outros. Sei que a mulher dele não podia ter filhos e ele pode ter posto em segundo plano o seu bem-estar para dar essa alegria aos dois. Também sei que há transexuais que não fazem a cirurgia genital, como o Thomas, e que conseguem viver bem assim. Mas eu não."
Em Abril, o "homem grávido", como sempre é anunciado, foi ao talk show com maior audiência da televisão norte-americana, The Oprah Winfrey Show. Deixou-se filmar a fazer uma ecografia e o mundo pôde ouvir o coração do bebé.
Nos fóruns online sucederam-se as reacções. Muitas negativas. "Isto é imoral e perturbador", comentava um leitor no blogue do diário Washington Post. "Isto é uma farsa, ele não passa de uma mulher", escrevia outro.
Nas últimas semanas, foi-se sabendo mais sobre a sua vida. Beatie chamava-se Tracy Lagondino, era modelo e chegou a participar no concurso Miss Teenager Havai. Há dez anos, iniciou a terapia hormonal (injecções regulares que interrompem a ovulação, fazem a voz engrossar, aumentam o número de pêlos no corpo), fez uma cirurgia para remoção das mamas, alterou o seu assento de nascimento. Legalmente, passou a ser um cidadão do sexo masculino. Casou. Abriu uma loja de t-shirts.
Nunca se submeteu a uma cirurgia de reatribuição de sexo (que aproveita os tecidos genitais existentes e converte-os na genitália do outro sexo), por isso, quando decidiu engravidar, bastou-lhe interromper as injecções de hormonas. E procurou um banco de esperma.
O que é um transexual?
Santinho Martins, endocrinologista aposentado do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, tratou dezenas de transexuais e tem as maiores dúvidas sobre se Beatie pode ser considerado um transexual.
Na biblioteca do Júlio de Matos, o professores recorre aos critérios usados para diagnosticar a mais extrema perturbação da identidade de género, definidos no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais da American Psychiatric Association: "Um transexual é alguém com uma persistente identificação com o outro sexo, com o desejo de ser do outro sexo, que se faz passar por ele ou que tem a convicção de que tem as sensações e as reacções típicas do outro sexo... A minha pergunta é: então como é que este Thomas Beatie tem uma reacção de maternidade? Será que é mesmo um transexual? Na minha opinião, não. Os homens não querem engravidar."
É também estranho, para o endocrinologista, que alguém faça uma ablação mamária, fique com a vagina e diga que é um homem. "E foi isso que ele fez. Eu sei que esta minha opinião não é consensual." E não é.
O site da Ilga Portugal (associação de Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero), por exemplo, não deixa dúvidas sobre o que entende como transexualidade: todas as pessoas "que já vivem, ou pretendem viver, no papel social do género oposto àquele que lhes foi atribuído ao nascimento, são consideradas transexuais", não sendo "relevante que a pessoa ainda não tenha feito, ou não planeie fazer, a cirurgia.
Diniz, 30 anos, nunca quis ter filhos. Biológicos, ou não. Foi uma criança triste e um adolescente isolado que, mesmo no Verão "com um calor insuportável", saia à rua de casaco para esconder as formas femininas. "Sempre achei que o meu corpo era um erro. Pensava que passava, mas com a puberdade agravou-se."
Aos 13 anos, leu uma reportagem sobre transexuais. "Fiquei a perceber que havia pessoas que não se identificavam com o seu sexo, que não eram homossexuais, que eram transexuais... fiquei a saber que havia um nome para aquilo que sentia." A partir daí, "só pensava que tinha que aguentar até ter dinheiro para fazer a operação." Nesse tempo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ainda não cobria as despesas.
Agora é chegado o momento. Diniz já "passou" a avaliação psicológica que é exigida a quem quer submeter-se a uma mudança de sexo - pelo menos, dois anos de exames para confirmar o diagnóstico de transexualismo. Está a fazer terapia hormonal. "Para mim a questão de manter o útero, os ovários, nem sequer se coloca."
Se calhar, diz baixinho, "é egoísmo". Mas agora que está prestes a mudar o seu corpo quer aproveitar ao máximo a vida, arranjar um trabalho melhor (está num call center), ser feliz. "E quando se tem filhos, acaba-se por viver quase exclusivamente para eles..."
Contudo, a escolha de Thomas Beatie não o perturba, tão pouco a questiona. "Ele tem todo o direito a ter filhos biológicos, nenhuma dúvida se me coloca. Desde que o bebé esteja bem." Mais: "Acho que se pudessem, alguns homens biológicos gostariam também de engravidar."
O limite é não ter filhos
Ivo, 20 anos, estudante de Psicologia, encara a questão com alguma angústia. Este rapaz bem-disposto e musculado, que passa horas no ginásio "a gastar energia", que vive com os pais, uma cadela e dois gatos e levou os últimos dois anos da sua vida a tentar explicar à família o que se passa com ele, tem uma certeza: "Sei que outras pessoas se calhar não vão concordar, mas um transexual nunca será realmente feliz."
Porquê? "Porque nunca seremos um homem (ou uma mulher, conforme o caso) como realmente seríamos se tivéssemos nascido biologicamente assim. E isso afecta-me bastante. Posso fazer todas as cirurgias, haverá sempre limites. E um dos limites é não poder ter filhos."
Desde os sete anos que Ivo se apresentava aos novos amigos que ia fazendo como rapaz, apesar de ter nascido rapariga. Desde essa altura que namorisca outras raparigas, muitas vezes mentindo-lhes - e muitas vezes sendo desmascarado. "Um dia, nas férias do Verão, apareceu uma menina à porta da nossa casa a pedir para falar com o Ivo e foi uma grande confusão, porque a minha mãe explicava-lhe que lá em casa só havia uma Iva."
Sempre pensou em crianças. "Em pequeno os meus colegas diziam: 'quero casar e ter filhos'. Eu dizia que queria adoptar." Mas só anos depois viria a confrontar-se, de facto, com a questão. E foi por causa de uma rapariga.
"Não chegámos a envolver-nos por pouco, eu gostava dela. Ela não sabia da minha situação. Para ela, eu era o Ivo e já tinha nascido Ivo. Uma vez houve uma conversa, ela disse-me que queria ter filhos... acho que foi a primeira vez que senti realmente o que era não poder ter tê-los", diz. "E é complicado."
"O que raio se passa?"
Quando ouviu a história de Thomas Beatie, a primeira reacção de Ivo foi: "O que raio está a passar-se aqui?"
Não é que seja "preconceituoso", assegura. "Estou aberto a diferentes formas de transexualidade." Mas preocupa-lhe a criança que vai nascer: "Há várias teorias que apontam para a possibilidade da transexualidade ter um fundo genético. Será que esta criança pode vir a ser transexual? Na sociedade em que vivemos, ser transexual é algo extremamente negativo. Sei que se tivesse um filho transexual ele iria passar por muitas coisas que eu não queria que ele passasse."
Há também quem questione a mediatização que Beatie deu ao caso. Jamison Green, um activista transgénero, diz na edição de Abril da revista The Advocat que conhece outros transexuais que tiveram filhos, mas que nenhum se expôs desta forma. "Será que toda esta publicidade não vai prejudicá-los [a Thomas e a Nancy] ou à criança?"
A André também faz confusão a forma como o norte-americano se expôs. Mais pelo facto dele exibir o seu lado feminino, quando supostamente o devia rejeitar, do que pelo impacto que a história de vida de Thomas terá na criança. "Um dia, quando tiver os meus filhos, também não lhes vou esconder o meu passado."
Certo é que o caso promoveu o debate sobre a transexualidade. Em Portugal, há muito que a Ilga reivindica uma Lei de Identidade de Género - semelhante à aprovada em Março do ano passado em Espanha e que veio permitir às pessoas transexuais a mudança de nome e de sexo no registo civil. Até que tal legislação exista, diz a Ilga, os portugueses transexuais continuarão a ter que recorrer aos tribunais para pedir a alteração do seu nome e sexo no seu registo e a sujeitar-se à discricionariedade de juizes.
Para além da obrigatoriedade da cirurgia genital, não ter tido filhos e ser irreversivelmente estéril têm sido alguns dos pressupostos exigidos pelos tribunais. André fala de "atentado aos direitos humanos". Santinho Martins admite que algumas destas imposições são "de uma grande violência".
A todos os seus doentes, contudo, repetiu o mesmo discurso: uma vez feita a cirurgia, não há retorno, a esterilidade é irreversível.
Preservar o esperma (no caso dos que nasceram fisicamente homens, mas têm "um cérebro do sexo oposto"), ou os ovócitos (no caso dos que vieram ao mundo com órgãos de mulher), são duas técnicas viáveis que permitem a um transexual sonhar ter filhos biológicos, como confirma Mário Sousa, especialista em reprodução assistida. Há quem já o tenha feito, mas não é tema de que se fale abertamente. Precisamente por medo das consequências legais. Ou seja, diz Santinho Martins, "há sempre soluções" para ter filhos biológicas. Mas os tribunais não podem saber.
Ivo prefere adoptar. Duas crianças - é o seu plano. Engravidar nunca esteve em cima da mesa. "Existe um conceito do que é ser homem e do que é ser mulher e na minha cabeça essa informação existe. Este corpo de mulher não é meu. E engravidar é uma coisa de mulheres." Thomas Beatie acha que não.
Ok, e a mim também não me parece. A vontade de ter filhos parece ser um sentimento inerente à maioria da humanidade. Independentemente de se ser homem ou mulher. Acredito plenamente que, se os homens pudessem engravidar e se algum se casasse com uma mulher estéril, não tenho dúvidas nenhumas que muitos homens, perante esta realidade, aceitariam ser eles os portadores de uma criança no ventre. Não lhes interessando que a sociedade ditasse que "Os homens não querem engravidar". Ter filhos é inerente ao ser humano. Bem, pelo menos a alguns.
O que me choca aqui, ainda mais que certas opiniões (como a insistente treta clínica que uma pessoa transexual tem necessariamente que querer fazer a cirurgia de redesignação de sexo, por exemplo) é a negatividade existente. Mas desde quando é que ser-se transexual é motivo de vergonha? Motivo de vergonha é, sim, a comum transfobia existente na sociedade, a aceitação muda de discriminações pelos sucessivos governos, certas (im)posições tomadas pela Ordem dos Médicos em relação à transexualidade. Isto sim, são motivos mais que suficientes para que um povo inteiro sinta vergonha de ser como é.
E não é com discursos de "Na sociedade em que vivemos, ser transexual é algo extremamente negativo", não é com uma aceitação de discursos transfóbicos, escondendo-nos como ratos que interiormente aceitaram estas teorias discriminatórias, que vamos mudar as coisas. Deixem de se considerarem coitadinhos e doentes. Mostrem quem são, pessoas tão normais como quaisquer outras, sem medos, sem vergonhas. E as coisas mudarão. Enquanto existirem vozes com discursos derrotistas, estaremos condenados.
[Portugal]
Is it a boy or a girl?
Around twenty Portuguese babies a year are born with no defined sex, a problem in sexual development which is a reality in Portugal.
[UK]
'No regrets' over DIY sex change
A former building firm boss who carried out his own DIY castration with a kitchen knife has spoken out, exactly a year later, about the "absolute joy" of being a woman.
[UK]
Support over gender issues
A TEESSIDE doctor praised the efforts of a transsexual who has started a new support group for people with gender conditions.
Dr Deborah Beere, lead consultant in contraception and sexual health, believes transsexual Denise Mosse will help bring a vital service to the area.
Denise, who has been living as a woman for five years, will hold the group's first meeting next month.
[Philippines]
Sassy
Excerpt: Her name is Sass, although when she was born 27 years ago, the doctor said she was a boy.
Sass is one of the co-founders of STRAP, the Society of Transsexual Women of the Philippines. At 3:30 on a sunny Monday afternoon, she gives an impromptu lecture on defining what a transgender is.
[New Zealand]
Revealed: Cindy of Samoa's secret
Cindy knew, Simon knew. TVNZ knew. But Stars in their Eyes viewers had to make up their own minds. Was that Tina Turner impersonator an Amazonian woman or a bloke?
"I'm a woman with extras," says the performer who goes by the stage name Cindy of Samoa. And yes, she says, she was born a man.
The 38-year-old hosted her own show in Apia for six years and was featured in a 1999 documentary about fa'afafine, Paradise Bent: Boys will be Girls in Samoa.
Photo: SIMPLY THE BEST: Stars in their Eyes performer, Cindy of Samoa. Was that Tina Turner impersonator an Amazonian woman or a bloke?
[Canada] [Commentary]
Nina Arsenault: Paying for sex changes is the least the government can doIs it a boy or a girl?
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[UK]
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Dr Deborah Beere, lead consultant in contraception and sexual health, believes transsexual Denise Mosse will help bring a vital service to the area.
Denise, who has been living as a woman for five years, will hold the group's first meeting next month.
[Philippines]
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"I'm a woman with extras," says the performer who goes by the stage name Cindy of Samoa. And yes, she says, she was born a man.
The 38-year-old hosted her own show in Apia for six years and was featured in a 1999 documentary about fa'afafine, Paradise Bent: Boys will be Girls in Samoa.
Photo: SIMPLY THE BEST: Stars in their Eyes performer, Cindy of Samoa. Was that Tina Turner impersonator an Amazonian woman or a bloke?
[Canada] [Commentary]
My lover, "Michael," is a man who adores transsexuals, or t-girls as we like to call ourselves. But he shocked me by saying, "I understand sex reassignment surgery is necessary for some people's happiness, but our medical system is already strained caring for those with life-threatening illnesses." If a man like Michael isn't sympathetic to the needs of my community, then no wonder ignoramuses like Tory MP Pierre Poilievre are trying to dictate what is medically necessary for transsexuals when they clearly know nothing of our lives.
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