Transfofa em Blog

Um espaço especial e pessoal, para dar relevo a cada momento único - Bem Vind@ ao meu Blog!

quinta-feira, junho 24, 2010

Considerações sobre a proposta de Lei de Identidade de Género do Bloco de Esquerda

Como se sabe, o Bloco de Esquerda apresentou uma proposta de Lei de Identidade de Género (LIG) na Quinta-feira passada dia 17.

Nesse mesmo dia tive oportunidade de apreciar a dita proposta. Depois de ler o seu conteúdo, não pude deixar de me sentir defraudada e desiludida.

Em primeiro lugar, não se trata efectivamente de uma proposta de LIG, mas de uma mera agilização de parte do processo a que se têm de submeter as pessoas transexuais.

O projecto trata apenas da questão do registo civil, facilitando a alteração de nome e género, libertando assim dos tribunais esta questão. Os requisitos são três: Viver-se há pelo menos dois anos no sexo social reclamado, ter-se estado, ou estar-se há pelo menos um ano, em tratamentos para adequar o seu corpo ao género agora reclamado (leia-se tratamento hormonal) não sendo exigida a cirurgia de redesignação do sexo e não se sofrer de nenhum transtorno de personalidade que impeça a capacidade livre e consciente de se tomar decisões sobre a própria pessoa.

Em relação à primeira exigência, há que pensar-se no tempo mínimo que deveria demorar cada processo: dois anos, segundo declarações do Prof. Dr. Rui Xavier Vieira à Visão. Este tempo deverá necessariamente incluir as avaliações psiquiátricas e a Prova de Vida (Real Life Test), que é o viver-se socialmente de acordo com quem somos, no nosso papel de género. Geralmente essa parte do processo inicia-se no mínimo um ano depois de se iniciar o processo, para quem ainda não se tenha assumido.

Ora bem, a proposta do BE acaba por aumentar em um ano o tempo mínimo de um processo que era de dois anos. Ou uma pessoa incia o processo com a sua identidade já assumida, e aí tem-se os dois anos, ou se se espera pelo empurrão dos psiquiatras, o processo é aumentado de dois para três anos. Isto é contrário à filosofia exposta na proposta, que supostamente deveria era diminuir o tempo dos processos, quantas vezes excessivos. Ponto negativo.

O segundo ponto refere que se esteja ou se tenha estado durante pelo menos um ano a fazer-se tratamento hormonal. Caricato, Uma pessoa que tenha estado um ano em tratamento hormonal e que pare, reverte o tratamento, pois esses tratamentos têm de ser contínuos. Mas de acordo com a proposta, basta fazer-se tratamento hormonal durante um ano. Se uma pessoa tiver parado durante dois anos, mas tenha feito tratamento hormonal durante um ano, as modificações que alcançou durante esse ano já desapareceram, além de que o corpo de muitas pessoas demora mais de um ano a reagir por completo ao tratamento hormonal. Então fica a pergunta: Para que serve esta exigência de se fazer tratamento durante um ano, se se pode parar e reverter todo o processo?

Não faz sentido nenhum. Ou se segue por uma linha que implique que qualquer pessoa possa alterar a documentação de acordo com a sua IG, ou se segue pela linha que quem o queira fazer tem de estar em tratamento. As duas em simultâneo é que não. Uma contradiz a outra.

Até parece que se enganaram nos tempos entre as duas primeiras exigências, pois mal por mal fazia mais sentido exigir-se dois anos de tratamento hormonal e um ano de real life test.

Quanto à terceira exigência, relembro aqui o caso de um economista galardoado com o prémio nobel que passou toda a sua vida esquizofrénico. Falo de John Forbes Nash Jr. cuja vida deu origem ao oscarizado filme A beautiful mind, com Russell Crowe no principal papel. E no entanto a esquizofrenia é considerada como incapacitante.

Não me parece de todo que a transexualidade seja como que uma vacina contra doenças do foro psiquiátrico. Parece-me mais que qualquer pessoa transexual pode sofrer de uma doença psíquica como outra pessoa qualquer. E a negação do direito que qualquer pessoa tem de ver reconhecida a sua IG por se sofrer de uma doença mental parece-me um abuso. Já não basta a uma pessoa sofrer de uma doença mental, ainda leva por cima com a negação da sua identidade.

Não é de todo justo vermos a nossa IG negada pela incapacidade médica de a “diagnosticar”. Cabe à classe médica a descoberta de métodos que os ajudem, mas a negação do direito de uma pessoa ser quem é por causa dessa incapacidade é, no mínimo, abusiva.

Falta um esclarecimento cabal se pessoas transexuais que tenham filhos poderão alterar o nome e género. Na minha opinião, deve ficar bem explícito na proposta de lei, caso contrário já estou a ver problemas nos registos civis pela adopção por casais do mesmo género não estar comtemplada em Portugal, com a alegação que a descendência ficaria com duas mães ou dois pais no BI.

Não acontecerá em todos, mas como em Portugal pessoas de boa fé são casos relativamente raros, não é de todo de admirar que apareçam problemas deste tipo. Uma grande lacuna neste projecto, na minha opinião, quando bastava no texto uma simples frase como “independentemente de ter descendência ou não”.

Isto em relação às exigências do BE para se poder alterar a documentação. Agora vejamos a exposição dos motivos.

É mencionado que “(...) os e as transexuais que desejam e podem fazer a operação de reasignamento de sexo (...)”, portanto está implícito que quem é transexual tem de querer fazer a CRS, e isto apesar dos psiquiatras portugueses já começarem a compreender que a transexualidade não tem a ver com cirurgias, mas sim com a identidade de género da pessoa, identidade essa que nem sequer é mencionada. É o vira-o-disco-e-toca-o-mesmo. Não compreendem que quem deseja fazer a CRS deseja-o por ser transexual, não para ser transexual, deseja-o porque quer adequar o seu corpo a quem é, não por desejar sê-lo, e com isto tudo esquecem-se das pessoas transexuais que não desejam a CRS.

Ou seja, com esta proposta, uma pessoa transexual que queira mudar a sua documentação mas que não deseje submeter-se a uma CRS, vai ser obrigada a mentir sempre e sempre para obter o diagnóstico.

E isto apesar de cada vez mais as comissões europeias vincularem a documentação de uma pessoa à sua IG e não a cirurgias. E isto apesar da World Professional Association for Transgender Health (WPATH) considerada a autoridade mundial nestas matérias claramente afirmar que se acabe com a exigência da CRS, portanto aceitando a existência de transexuais que não desejam a dita CRS.

Podiam perfeitamente explanar os motivos dando ênfase à IG, que é o que verdadeiramente define quem é transexual ou quem não é. Em vez disso, deixaram-se enredar pelas cirurgias. Péssimo, na minha opinião.

Mencionam também a autorização da Ordem dos Médicos, que em regra pode demorar entre 9 meses a três anos, e o tempo excessivo que estes processos demoram, mas implicarem que com esta agilização se vai resolver estes problemas é, no mínimo, naive. Ou então estão a tomar-nos por imbecis.

Uma das coisas mais importantes seria acabar-se com a imposição da Ordem dos Médicos, que não serve para nada. Os processos só seguem para lá se tiverem duas apreciações em como uma pessoa é transexual. A OM limita-se a ver se os documentos estão todos e em ordem, pois não conhecem a pessoa em causa, salvo se algum médico estiver a tratar do processo, e mais nada. Os dois relatórios confirmam a transexualidade? Obvio, senão o processo não tinha ido para lá. Então autorize-se.

Somos o único país europeu com esta absurda exigência, e não sei se ela existe em mais algum lugar no mundo. Mas para o BE este tempo de espera parece não ser importante, desde que se tenha a documentação alterada. Eu digo que é importante, e muito, para todas as pessoas transexuais que desejam a CRS. Não é só a documentação que representa um problema para as pessoas transexuais, a OM também o é, bem como o tempo excessivo da maioria dos processos.

Outro problema é que os processos psiquiátricos estão unicamente virados para as cirurgias, em vez de estarem para ajudar as pessoas a aceitarem-se. Basta pensar-se que, se uma pessoa transexual admitir sequer que tem dúvidas sobre a vontade de fazer a CRS, o seu processo automaticamente entra num estado de hibernação, quando não cessa de imediato. E como todo o processo está virado para as cirurgias, se uma pessoa admite a mais pequena dúvida,e o processo pára, muitos psiquiatras deixam de passar, ou mesmo nunca chegam a iniciar, receitas hormonais. Portanto uma paragem forçada do tratamento hormonal, ou um tratamento que nunca chega a iniciar-se.

Um problema específico das transexuais femininas, que vem realçar os exemplos dados pelo BE: a pilosidade facial. Toda a gente sabe que o tratamento hormonal não resulta nesta parte do nosso corpo, salvo se se iniciar o tratamento antes do aparecimento da pilosidade facial na puberdade. Como os nossos médicos não ligam a estes pormenores, os tratamentos só se iniciam a partir dos dezoito anos, quando a pilosidade já se instalou. E ou uma pessoa tem posses para as técnicas de depilação, ou fica numa posição bastante desconfortável, mesmo com a documentação alterada, pois essa pilosidade nota-se.

Como o BE bem frisou que o Tribunal da Relação de Lisboa, no Ac. 22 de Junho de 2004, Ref. 3607/2004 atesta que, e cito “o que releva socialmente é o seu comportamento, o modo como se vê frente aos outros seres humanos, particularmente no domínio do relacionamento em função do sexo, e da forma como é visto pelos outros”. E eu pergunto, como se verá a si própria uma mulher transexual sem posses para fazer depilações definitivas, que mesmo usando lâmina umas duas vezes ao dia não resolve o problema, com pilosidade facial? Que amor próprio poderá essa pessoa ter? Como a verão os outros? A mulher barbada do circo? E esta pessoa altera a sua documentação para continuar a ser o alvo da chacota de outros, um bullying de graúdos? Uma pessoa nesta situação até é discriminada pelos seus pares, que não querem ser vistos ao pé dela, quanto mais por terceiros.

E apesar de dar estes exemplos, o BE decidiu ignorar estas questões. Isto não é, nem de perto nem de longe, uma proposta de lei de identidade de género. Não passa de uma mera agilização de parte do processo, benéfica sem dúvida, mas muito, muito incompleta e com lacunas graves.

Como eu afirmei há tempos numa notícia que escrevi para o PortugalGay.pt “os problemas relativos à transexualidade não se resolvem com uma proposta minimalista como esta. Existem muitos problemas ao longo de todo o processo que necessitam de um olhar muito mais incisivo do que uma mera simplificação de procedimentos e que visa beneficiar somente uma parte da população transexual (a que fez ou quer fazer a CRS), deixando que a restante população continue a sofrer discriminação.”

O direito à alteração da documentação legal tem de estar associado à identidade de género, e não a cirurgias. É necessária uma lei de identidade de género em Portugal, não uma mera agilização de uma pequena parte de um processo, que comtemple toda a população transexual e não somente parte dela.

O BE devia ter ido mais longe, aliás, diria mesmo que o BE tinha a obrigação de ter ido muito mais longe.