Começo por felicitar todos e todas que lutaram e lutam pelo reconhecimento dos direitos das pessoas transexuais. A aprovação da agilização de parte do penoso e quantas vezes insensível e demorado processo a que têm de se submeter as pessoas transexuais para que lhes seja reconhecida a sua identidade de género foi uma vitória, pequena por si só pois muitos ainda são os problemas para os quais ainda se tem de encontrar solução, mas enorme e com um grande significado para esta pequena comunidade de discriminados, pois finalmente um Governo em Portugal se debruçou sobre a existência desta comunidade.
Foi uma vitória para nós e para os direitos humanos em Portugal, que chega com uns vinte anos de atraso. Mas chegou, e como se costuma dizer, mais vale tarde que nunca.
Um pequeno àparte ao Governo: Não se trata de uma “mudança de identidade de género” como diz a sua proposta. A identidade de género da pessoa não muda. E aí reside o cerne da questão.
Como seria de esperar, estive presente no dia do debate. Estava com bastante curiosidade em ver as reacções dos partidos representados às propostas e qual a argumentação apresentada.
Chegámos, eu e a Lara, pelas três horas, pois já sabíamos que, ao contrário do previsto, a sessão iniciar-se-ia com outro debate. Assim, enquanto decorria o outro debate, diverti-me a observar os usos e costumes da nossa terra.
Algumas curiosidades, como o facto de cada partido só aplaudir oradores da sua própria bancada, independentemente da matéria em debate, foi uma das curiosidades que notei, embora não se possa dizer que tenha sido novidade. Outra foi um (penso eu) funcionário do Parlamento que passou a sessão toda (pelo menos até acabar a discussão das duas propostas, altura em que me retirei) a ir trocar copos de água aos deputados. Ignoro se terá mais alguma função lá dentro, mas esta tinha.
Agora em relação ao debate propriamente dito. Quando se esperava (pelo menos eu) uma tomada de posição com a explanação das razões, o que pude observar foi declarações de posição mas sem explanação de razões.
A bancada do CDS-PP, que votou contra, afirmou que o Governo procurava distrair as atenções dos graves problemas com que se debate Portugal. Se pensarmos que o debate demorou à volta de vinte minutos percebe-se bem o ridículo desta afirmação. Na minha opinião (e vale o que vale) nada mais foi que uma frase pensada para ser vista nos telejornais, ou melhor, nos media.
Em relação à irreversibilidade da alteração, parece-me que não perceberam uma coisa muito importante. As propostas não tratavam das alterações físicas a que se submetem as pessoas transexuais, mas do reconhecimento de cada pessoa pela sua identidade de género, que não tem necessariamente a ver com as alterações físicas. Tanto que a pessoa tem que ser diagnosticada como tendo um “transtorno de identidade de género” antes de qualquer alteração que deseje fazer, e aqui inclui-se o tratamento hormonal. Evidentemente os deputados não têm necessariamente que saber tudo sobre tudo, mas bem que podiam ter estudado mais um bocado a temática do género. E quando se fala em estudar não é unicamente saber-se de uma corrente de pensamento, mas perceberem que existem várias abordagens, cada uma com a sua argumentação. Só assim se pode tomar uma posição consciente sobre qualquer assunto.
O PSD estava com receio de que aparecessem homens grávidos em Portugal. E mesmo dizendo que não, a posição tomada foi a da esterilização forçada. Também o PSD parece-me que, à semelhança do CDS-PP, não distinguiu entre a identidade de género de uma pessoa e as alterações que essa pessoa deseje, ou não, fazer. É que as alterações são uma consequência da transexualidade, não uma causa para o diagnóstico, como se pensava antigamente e como pensam ainda algumas pessoas que pararam no tempo.
Outra curiosidade é que os defeitos que o PSD encontrou nas propostas aplicam-se tanto ao projecto do BE como ao do Governo. Como se explica então que na votação se tenha abstido na proposta do BE e votado contra a do Governo? A argumentação utilizada foi inexistente, somente mencionaram que os projectos não excluíam a possibilidade de procriar, sem no entanto explanarem as razões porque se deve proibir estas pessoas de gerarem descendência. O que mais se aproximou de uma argumentação foi terem afirmado que estas pessoas deviam assumir "Uma cirurgia completa, por inteiro, resignando ao aparelho reprodutor feminino com que nasceram”. Obviamente que não mencionou que a cirurgia completa não acede ao aparelho reprodutor masculino, portanto na prática esta exigência nada mais é do que uma esterilização forçada dos transexuais masculinos. Penso que o direito de se ter descendência é um dos direitos inalienáveis do ser humano, logo esta exigência nada mais é do que um ataque a um dos mais básicos direitos humanos. Condenável a todos os níveis.
Mas como dizia, ambos os projectos, para o PSD, têm esta falha. Depois de pensar um bocado, só posso chegar a uma conclusão: o PSD votou contra o projecto do Governo, não por divergências de fundo com o projecto, pois absteve-se no do BE que é neste ponto semelhante, mas por ser do Governo. E como é do Governo, vota-se contra, independentemente do que lá se encontre inserido. E é este o maior partido da oposição. Dá que pensar.
No rescaldo da votação considero necessário comentar as declarações do cirurgião plástico Dr. João Décio Ferreira à Lusa, em que faz afirmações tão antigas como a de que uma pessoa transexual tem de querer as cirurgias. Há 30 anos atrás efectivamente pensava-se assim. Mas em 30 anos o mundo evoluiu e agora já se sabe que essa era uma abordagem errada, embora especialistas menos informados ainda pensem assim. E o Dr. Décio tem alguns contras: não é psiquiatra, não tem contacto ou terá um contacto limitado com pessoas transexuais que não desejem submeter-se às cirurgias devido à sua especialidade e tem estreito contacto com “especialistas” que ainda pensam assim e que não conseguem ultrapassar os seus próprios preconceitos.
Uma tirada curiosa é a afirmação de que os transexuais masculinos que engravidaram não são transexuais ou que nunca seriam diagnosticados como tal em Portugal. Esquece-se que essas pessoas fizeram processos de transexualidade, foram diagnosticadas como tal por “especialistas” nos seus países e só depois de comprovada a sua identidade de género é que foram considerados homens. Portanto o Dr. Décio deve estar a dizer que afinal os portugueses é que sabem, os psiquiatras espanhóis e norte-americanos, coitados, andam todos enganados. Uma boa ideia, nesse caso, seria construir-se uma escola em Portugal e qualquer psiquiatra que quisesse exercer vinha cá aprender.
Considerando que a infertilidade feminina tem sido ao longo dos tempos motivo válido para o divórcio, se isto não é querer gerar descendência não sei o que será. E, ao contrário do Dr. Pedro Freitas, por exemplo, amigo do Dr. Décio e que acredita piamente que um homem que desejar ter filhos não é um homem, eu acredito piamente que o homem, se fosse biologicamente possível, fá-lo-ia sem nenhuma dúvida. Este tipo de afirmaçóes tão tipicamente macho-latinas são bem demonstrativas da dificuldade que até psiquiatras e doutores têm de superar os seus preconceitos.
Não posso deixar de notar a indiferença de sectores que, por exemplo, quando do debate sobre o casamento gay, vieram a público expressar o seu apoio, e que agora primaram por uma total ausência, que considero ser bastante significativa e bem demonstrativa do abandono a que está sujeita a comunidade transexual em Portugal. Figuras públicas que tanto bradaram pelo casamento homossexual nem vê-las, os médicos pela escolha, que quando da audição parlamentar sobre transexualidade feita pelo BE nos deram o seu apoio, idem. Manifestações de apoio à porta da assembleia, nada. Nos media, Fernanda Câncio, que tanto tem defendido os temas LG como o casamento, nem uma linha escreveu agora sobre nós, que eu tenha tido conhecimento. Triste, mas nada que me surpreenda. Tenho a certeza que, quando houver debate sobre a adopção homossexual, estes desaparecimentos deixarão de existir, e haverá declarações públicas de apoio a tão nobre causa. Pena que a transexualidade seja considerada uma causa plebeia em vez de causa nobre, como são considerados os temas homossexuais.
Termino com um comentário que descobri numa notícia publicada no Jornal de Notícias publicada a 29 de Setembro intitulada “Projectos deixam de fora filhos de transexuais” da autoria de Nuno Miguel Ropio. O autor deste comentário anónimo (obviamente) intitulou-o de “Governo sombra do BE” e o comentário reza assim:
“Tenho a certeza de que se o BE estivesse no poder (o diabo seja surdo) o governo seria mais ao menos assim; O presidente um paaneleiro, o PM um travesti, o ministro da educação um cigano, o ministro da saúde um drogado, o ministro da administração interna um preto, a ministra da cultura uma lésbica, e por aí fora.”
Num único comentário, este infeliz consegue demonstrar o pior que existe no ser humano. Transfobia, homofobia, racismo, está tudo lá. Pelo comentário deduz-se que seja de direita. E é assim que vai a direita em Portugal.
Foi uma vitória para nós e para os direitos humanos em Portugal, que chega com uns vinte anos de atraso. Mas chegou, e como se costuma dizer, mais vale tarde que nunca.
Um pequeno àparte ao Governo: Não se trata de uma “mudança de identidade de género” como diz a sua proposta. A identidade de género da pessoa não muda. E aí reside o cerne da questão.
Como seria de esperar, estive presente no dia do debate. Estava com bastante curiosidade em ver as reacções dos partidos representados às propostas e qual a argumentação apresentada.
Chegámos, eu e a Lara, pelas três horas, pois já sabíamos que, ao contrário do previsto, a sessão iniciar-se-ia com outro debate. Assim, enquanto decorria o outro debate, diverti-me a observar os usos e costumes da nossa terra.
Algumas curiosidades, como o facto de cada partido só aplaudir oradores da sua própria bancada, independentemente da matéria em debate, foi uma das curiosidades que notei, embora não se possa dizer que tenha sido novidade. Outra foi um (penso eu) funcionário do Parlamento que passou a sessão toda (pelo menos até acabar a discussão das duas propostas, altura em que me retirei) a ir trocar copos de água aos deputados. Ignoro se terá mais alguma função lá dentro, mas esta tinha.
Agora em relação ao debate propriamente dito. Quando se esperava (pelo menos eu) uma tomada de posição com a explanação das razões, o que pude observar foi declarações de posição mas sem explanação de razões.
A bancada do CDS-PP, que votou contra, afirmou que o Governo procurava distrair as atenções dos graves problemas com que se debate Portugal. Se pensarmos que o debate demorou à volta de vinte minutos percebe-se bem o ridículo desta afirmação. Na minha opinião (e vale o que vale) nada mais foi que uma frase pensada para ser vista nos telejornais, ou melhor, nos media.
Em relação à irreversibilidade da alteração, parece-me que não perceberam uma coisa muito importante. As propostas não tratavam das alterações físicas a que se submetem as pessoas transexuais, mas do reconhecimento de cada pessoa pela sua identidade de género, que não tem necessariamente a ver com as alterações físicas. Tanto que a pessoa tem que ser diagnosticada como tendo um “transtorno de identidade de género” antes de qualquer alteração que deseje fazer, e aqui inclui-se o tratamento hormonal. Evidentemente os deputados não têm necessariamente que saber tudo sobre tudo, mas bem que podiam ter estudado mais um bocado a temática do género. E quando se fala em estudar não é unicamente saber-se de uma corrente de pensamento, mas perceberem que existem várias abordagens, cada uma com a sua argumentação. Só assim se pode tomar uma posição consciente sobre qualquer assunto.
O PSD estava com receio de que aparecessem homens grávidos em Portugal. E mesmo dizendo que não, a posição tomada foi a da esterilização forçada. Também o PSD parece-me que, à semelhança do CDS-PP, não distinguiu entre a identidade de género de uma pessoa e as alterações que essa pessoa deseje, ou não, fazer. É que as alterações são uma consequência da transexualidade, não uma causa para o diagnóstico, como se pensava antigamente e como pensam ainda algumas pessoas que pararam no tempo.
Outra curiosidade é que os defeitos que o PSD encontrou nas propostas aplicam-se tanto ao projecto do BE como ao do Governo. Como se explica então que na votação se tenha abstido na proposta do BE e votado contra a do Governo? A argumentação utilizada foi inexistente, somente mencionaram que os projectos não excluíam a possibilidade de procriar, sem no entanto explanarem as razões porque se deve proibir estas pessoas de gerarem descendência. O que mais se aproximou de uma argumentação foi terem afirmado que estas pessoas deviam assumir "Uma cirurgia completa, por inteiro, resignando ao aparelho reprodutor feminino com que nasceram”. Obviamente que não mencionou que a cirurgia completa não acede ao aparelho reprodutor masculino, portanto na prática esta exigência nada mais é do que uma esterilização forçada dos transexuais masculinos. Penso que o direito de se ter descendência é um dos direitos inalienáveis do ser humano, logo esta exigência nada mais é do que um ataque a um dos mais básicos direitos humanos. Condenável a todos os níveis.
Mas como dizia, ambos os projectos, para o PSD, têm esta falha. Depois de pensar um bocado, só posso chegar a uma conclusão: o PSD votou contra o projecto do Governo, não por divergências de fundo com o projecto, pois absteve-se no do BE que é neste ponto semelhante, mas por ser do Governo. E como é do Governo, vota-se contra, independentemente do que lá se encontre inserido. E é este o maior partido da oposição. Dá que pensar.
No rescaldo da votação considero necessário comentar as declarações do cirurgião plástico Dr. João Décio Ferreira à Lusa, em que faz afirmações tão antigas como a de que uma pessoa transexual tem de querer as cirurgias. Há 30 anos atrás efectivamente pensava-se assim. Mas em 30 anos o mundo evoluiu e agora já se sabe que essa era uma abordagem errada, embora especialistas menos informados ainda pensem assim. E o Dr. Décio tem alguns contras: não é psiquiatra, não tem contacto ou terá um contacto limitado com pessoas transexuais que não desejem submeter-se às cirurgias devido à sua especialidade e tem estreito contacto com “especialistas” que ainda pensam assim e que não conseguem ultrapassar os seus próprios preconceitos.
Uma tirada curiosa é a afirmação de que os transexuais masculinos que engravidaram não são transexuais ou que nunca seriam diagnosticados como tal em Portugal. Esquece-se que essas pessoas fizeram processos de transexualidade, foram diagnosticadas como tal por “especialistas” nos seus países e só depois de comprovada a sua identidade de género é que foram considerados homens. Portanto o Dr. Décio deve estar a dizer que afinal os portugueses é que sabem, os psiquiatras espanhóis e norte-americanos, coitados, andam todos enganados. Uma boa ideia, nesse caso, seria construir-se uma escola em Portugal e qualquer psiquiatra que quisesse exercer vinha cá aprender.
Considerando que a infertilidade feminina tem sido ao longo dos tempos motivo válido para o divórcio, se isto não é querer gerar descendência não sei o que será. E, ao contrário do Dr. Pedro Freitas, por exemplo, amigo do Dr. Décio e que acredita piamente que um homem que desejar ter filhos não é um homem, eu acredito piamente que o homem, se fosse biologicamente possível, fá-lo-ia sem nenhuma dúvida. Este tipo de afirmaçóes tão tipicamente macho-latinas são bem demonstrativas da dificuldade que até psiquiatras e doutores têm de superar os seus preconceitos.
Não posso deixar de notar a indiferença de sectores que, por exemplo, quando do debate sobre o casamento gay, vieram a público expressar o seu apoio, e que agora primaram por uma total ausência, que considero ser bastante significativa e bem demonstrativa do abandono a que está sujeita a comunidade transexual em Portugal. Figuras públicas que tanto bradaram pelo casamento homossexual nem vê-las, os médicos pela escolha, que quando da audição parlamentar sobre transexualidade feita pelo BE nos deram o seu apoio, idem. Manifestações de apoio à porta da assembleia, nada. Nos media, Fernanda Câncio, que tanto tem defendido os temas LG como o casamento, nem uma linha escreveu agora sobre nós, que eu tenha tido conhecimento. Triste, mas nada que me surpreenda. Tenho a certeza que, quando houver debate sobre a adopção homossexual, estes desaparecimentos deixarão de existir, e haverá declarações públicas de apoio a tão nobre causa. Pena que a transexualidade seja considerada uma causa plebeia em vez de causa nobre, como são considerados os temas homossexuais.
Termino com um comentário que descobri numa notícia publicada no Jornal de Notícias publicada a 29 de Setembro intitulada “Projectos deixam de fora filhos de transexuais” da autoria de Nuno Miguel Ropio. O autor deste comentário anónimo (obviamente) intitulou-o de “Governo sombra do BE” e o comentário reza assim:
“Tenho a certeza de que se o BE estivesse no poder (o diabo seja surdo) o governo seria mais ao menos assim; O presidente um paaneleiro, o PM um travesti, o ministro da educação um cigano, o ministro da saúde um drogado, o ministro da administração interna um preto, a ministra da cultura uma lésbica, e por aí fora.”
Num único comentário, este infeliz consegue demonstrar o pior que existe no ser humano. Transfobia, homofobia, racismo, está tudo lá. Pelo comentário deduz-se que seja de direita. E é assim que vai a direita em Portugal.
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