Este é um comentário que preferia não escrever, pois é sinal que as minhas esperanças foram goradas. Não é surpreendente nem se pode dizer que seja inesperado, mas sinceramente pensava que as atitudes estavam a mudar. Mas não.
Não era para ter ido ao debate sobre a lei de alteração de nome e género, mas à última da hora mudei de ideias, e ainda bem que o fiz.
Cheguei em cima da hora, começava às nove, e ainda não se via casa cheia. Pessoas conhecidas já lá estavam. O presidente da ILGA Portugal, Paulo Corte Real, encontrava-se no exterior a fumar um cigarrito e em franca conversa com Bruno Horta, da revista Time Out Lisboa. No interior já se encontravam Luísa reis, do GRIT, Sandra Saleiro, uma das oradoras, o Dr. Pedro Freitas, psiquiatra sexólogo, Nuno Ropio do Jornal de Notícias, enfim, algumas pessoas.
José Soeiro, do Bloco de Esquerda, chegou pouco depois, ainda a tempo de fumar um cigarrinho cá fora enquanto conversávamos. Deu tempo para lhe pôr uma questão, que por sinal não foi sugerida por ninguém durante o debate: O espírito da lei implica que qualquer transexual, deseje ou não submeter-se a cirurgias, tem direito a ver a sua identidade de género reconhecida. Como se sabe, a maioria dos psiquiatras e psicólogos que tratam destes casos, contrariando claramente os Standards of Care da Wpath (World Professional Association for Transgender Health) só consideram como transexual quem se deseja submeter à CRS (Cirurgia de Redesignação de Sexo), portanto em clara oposição ao espírito da lei. A minha pergunta visava saber, no caso em que uma pessoa assumisse claramente perante os psiquiatras e psicólogos o seu desejo e direito de não se submeter à CRS, e eles, desprezando a identidade de género da pessoa, se recusassem a emitir o diagnóstico necessário para se poder proceder à alteração de nome e género, a quem se poderia essa pessoa dirigir para resolver o problema. A resposta que obtive foi que essa pessoa procurasse outro psiquiatra e outro psicólogo. Referi então o caso de pessoas que não tenham dinheiro para irem ao sector privado. A resposta foi que “nesse aspecto não há nada a fazer”.
Isto tem a ver com o quê? Antes desta crise em que estamos, Já não eram muitas as pessoas com posses suficientes para poderem ir a consultas privadas de psiquiatria e psicologia, devido aos altos preços cobrados por estes profissionais por cada consulta. Agora, com a crise, prevê-se uma ainda maior dificuldade, remetendo as pessoas para o sector público, salvo alguns afortunados com posses suficientes para o efeito. E como se sabe, o sector público grassa de profissionais que pensam que o que define o género das pessoas é a genitália e não a identidade de género. Portanto, a não menção da “independência do desejo de se submeter a CRS ou não” vai previsivelmente trazer problemas futuros. Esperemos que me engane.
Pouco depois de Júlia Pereira, outro membro do GRIT chegar, iniciou-se então o debate (ou tertúlia, para quem goste do termo, com a informação de que o representante do PS não podia vir, e que vinha em sua substituição o líder da JS.
Júlia começou por fazer um pequeno background da situação envolvente à lei, e passou a palavra a Luísa. Luísa, agradecendo aos representantes partidários pela lei, começou então a falar do trabalho desenvolvido pelo GRIT e pela ILGA desde a sua formação. Para quem ouviu ficou a sensação de que esta lei existe unicamente graças à ILGA Portugal e ao GRIT. E aqui vi logo para onde se dirigia esta reunião. Nem uma palavra foi dita sobre as activistas transexuais que têm dado a cara estes anos todos pelas pessoas transexuais não pertencentes à ILGA Portugal. Nem mencionou que, além da proposta apresentada pela ILGA, mais propostas foram apresentadas por outras organizações e activistas independentes. Nem disse, já agora, que a proposta inicial da ILGA continha tais absurdidades que forçaram uma proposta de reunião inter-associativa para debater e apresentar-se uma proposta única, à qual a ILGA, na altura, nem se dignou a responder.
Também não disse, obviamente, que o terceiro debate previsto para além dos dois que mencionou e que foram com representantes de dois hospitais que tratam casos de transexualidade (Júlio de Matos e Santa Maria), e que era para ser feito entre pessoas transexuais que finalmente poderiam discutir entre si e debater os problemas comuns, nunca foi feito.
Ou seja, a lei existe graças à ILGA Portugal por intermédio da sua extensão GRIT. As restantes pessoas que estiveram no Parlamento a protestar pela morte de Gisberta, que deram a cara na TV e nos restantes media, que trabalharam na melhora da proposta de lei inicial da ILGA ou que fizeram propostas autónomas, que têm acompanhado as marchas do orgulho levantando a bandeira trans, se não forem da ILGA Portugal não interessam.
Deplorável apagamento do activismo transexual existente no nosso país e deplorável atitude da ILGA Portugal, bem representado pelo silêncio cúmplice do seu presidente. Não é a primeira vez que acontece. Já aconteceu com o Compton Cafeteria Riot, o primeiro grito de revolta das comunidades transexual e transgénero nos Estados Unidos, poucos anos antes dos famosos Stonewall Riots que deram início ao movimento LGBT. Curiosamente (ou não) também a revolta de Stonewall foi protagonizada por elementos das comunidades transexual e transgénero. O primeiro só é recordado por algumas pessoas transexuais que sabem da sua existência, apesar da cortina de silêncio, enquanto o segundo foi usurpado pela comunidade gay. E depois ainda se houvem vozes a queixarem-se da falta de activistas transexuais em Portugal. Pois se os poucos que existem são ignorados e silenciados pelas associações existentes que, em vez de entrarem numa luta conjunta entram numa lógica clubística/partidarista, não devia haver admiração nenhuma. Mesmo com o exemplo dado pelo Bloco de Esquerda e Partido Socialista/Governo que, neste aspecto, souberam juntar esforços para a obtenção de um objectivo comum, as associações portuguesas teimam na recusa de se juntar esforços. Como afirmei atrás, deplorável e lamentável.
Mais lamentável é o facto de serem as próprias “activistas” transexuais a colaborarem conscientemente com esta situação. Nota negativa para o GRIT, Luísa reis e Júlia Pereira neste aspecto.
Mas o que mais me indignou foi os restantes oradores terem ido pela mesma bitola. Sandra Saleiro, que falou a seguir, descreveu alguns factos que apreendeu no decorrer do estudo que tem feito sobre as necessidades mais prementes das comunidades transexual e transgénero, e nada mencionou sobre quem tem lutado de fora da ILGA Portugal. Nem mesmo numa alusão direccionada ao GRIT que fez mais para o fim, alertando para o facto das pessoas transexuais terem de deixar as vergonhas e medos em casa e darem a cara frontalmente por esta causa, dirigida aos membros do GRIT, e estando presentes activistas que dão a cara, as mencionou.
Este alerta despoletou logo uma reacção de Luísa Reis, que, como se sabe é uma das pessoas que mais vergonha têm de serem transexuais, há muito tempo advogando (escondendo-se atrás de) direitos à privacidade e à não divulgação da transexualidade de cada um. Inegavelmente é um direito que assiste a toda a gente. Mas ao estar-se a usar este direito meramente como pretexto para ocultar a própria vergonha e/ou cobardia está-se a desvirtuar esse mesmo direito. Deve-se conquistar esse direito antes de o usar. Desta maneira esse direito fica vazio de significado, não passando de meras palavras que ocultam os verdadeiros motivos.
De seguida falou José Soeiro, do BE, que se dedicou a falar da lei e dos problemas apresentados na comissão que juntou os dois projectos. Aqui vai um reparo para essa comissão: Existem independentes nos deputados, nos partidos políticos, já houve no Governo, independentes podem até ser presidentes da República, mas a comissão deliberou que não podiam ser ouvidos nesta matéria. Com que justificação se silenciam assim as vozes independentes, quando até meros grupos sem existência legal foram ouvidos pela comissão? Fica esta pergunta no ar para reflexão.
Enquanto José Soeiro falava, chegou o representante do PS, que penso ser Pedro Delgado Alves (se não for as minhas desculpas) pois não apanhei o nome, e que discursou no final, dizendo uma coisa que podia ter servido para lançar o debate sobre o assunto mas que passou despercebido às activistas trans da mesa. Mencionou que na revisão constitucional que se avizinha não vai entrar a menção de “identidade de género” como efectivamente devia, mas uma menção mais generalista e que dá azo a interpretações contraditórias: “género”. Que é mais “abrangente” que “identidade de género”.
Muito bem, digo eu, mas qual género? Um caso: uma pessoa transexual feminina vai iniciar o seu processo. O psiquiatra que a atende é adepto fervoroso das teorias de Zucker (psiquiatra tristemente conhecido por ter inventado o “travestismo fetichista” e adepto das terapias de masculinização para transexuais femininas e vice-versa) e em vez de ajudar a pessoa na sua identidade de género decide proteger o género que considera ser da pessoa (masculino, da genitália). Fantasia? Já aconteceu em Portugal e acontece no Canadá (onde Zucker tem a sua clínica).
Se estivesse explicitamente mencionada na constituição a “identidade de género” teoricamente isto não aconteceria. Mas com “género” qualquer pessoa que ache que uma pessoa pertence ao género ditado pela genitália com que se nasce pode obstruir ou discriminar uma pessoa transexual considerando estar a defender o género dessa pessoa. Género não basta, tem de ser identidade de género no artº 13º. Há anos que me bato por isto, e pelo visto vou continuar durante mais anos.
Seguiram-se perguntas da audiência, onde fiquei a saber pela voz da sua presidente que a AMPLOS (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual) não se chama assim mas sim AMPLOSIG (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género) facto que desconhecia por completo e que puseram as suas questões. Não me recordo de todas as questões feitas por toda a gente portanto vou só referir as que me lembro. A AMPLOSIG pôs questões sobre transexuais que tenham filhos menores, da parte dos filhos e da parte da pessoa transexual. Como a lei só refere filhos maiores de idade, como se resolvia a nível de documentação, tal como Nuno Ropio que abordou o mesmo tema.
Penso que a lei está bem nesse aspecto. O dar o direito aos filhos de, quando maiores de idade, poderem escolher se alteram a documentação é bom. Caso contrário, para que alguns transexuais (que referi atrás, os envergonhados) não serem confrontados com a sua transexualidade (Ai Jesus, cruzes, canhoto), estava-se a forçar quem não tem nada a ver com o assunto a assumir algo que pode ser contra a sua vontade. Não podemos esmagar direitos de outrém com os nossos direitos, ou seja, a nossa liberdade acaba quando começa a do outro.
Este tema insere-se, por razões óbvias, na adopção (e direitos de parentalidade), sendo um dos pontos em que a luta de duas comunidades se junta, e que pode dar um empurrão no sentido de se acabar com essa discriminação que não tem razão de existir. Todos os estudos independentes de que tenho conhecimento revelam que um casal homossexual tem as mesmas capacidades de criar e educar uma criança como os casais heterossexuais. O mesmo para casais transexuais em comparação com os casais cissexuais. Mas isto ainda irá ser debatido muitas e muitas vezes no futuro.
O Dr Pedro Freitas afirmou apoiar esta lei (um bocado estranho, considerando que era adepto da esterilização forçada das pessoas transexuais) e relembrou que se tem de lutar contra a abusiva e intolerável ingerência da Ordem dos Médicos nos processos de transexualidade (bandeira que arvoro também há muito tempo, tendo-a inclusivé mencionado numa reunião com Miguel Vale de Almeida como uma das principais reivindicações nossas). A ser verdade dou os parabéns ao Dr por esta mudança de atitudes e concordo com ele a 100%.
Mais algumas perguntas por elementos da rede ex aequo (penso eu) das quais nada me ficou na memória (as minhas desculpas) e pelo adiantado da hora o debate acabou. Não sem antes Luísa ter agradecido por aquela que é considerada como a lei mais avançada do mundo (o que me espantou pois ela ainda há bem pouco tempo atrás afirmava a pés juntos que só eram transexuais as pessoas que se queriam operar, mas achei um bom avanço pessoal da parte dela) e Júlia Pereira ter anunciado mais um debate previsto sobre o processo clínico, e outro em memória de Gisberta (finalmente vi os meus esforços recompensados, considerando que este último é fruto da minha insistência em se comemorar o Transgender Day of Remembrance), previsivelmente em Fevereiro (o clínico não sei quando será). Também me caiu bem a sua declaração de que “esta lei não era o fim da luta, mas sim o princípio”. Só faço votos para que se estivesse a referir às pessoas transexuais e seus apoiantes na totalidade e não só da ILGA Portugal.
Algumas perguntas ficaram por fazer: Porque a lei não contempla explicitamente a “identidade de género”? Porque não foi mencionado na lei a independência de qualquer cirurgia para o reconhecimento da identidade de género da pessoa?
Podia tê-las feito? Sim, podia. Mas depois de ver o completo apagamento de transexuais que sempre deram a cara por estas lutas, sofrendo na pele as consequências desta luta, pessoas como Jo Bernardo, Lara Crespo e eu, Eduarda Santos, e mais algumas que foram aparecendo, fiquei sem vontade de o fazer. Devia tê-lo feito? Talvez sim, talvez não. Mas em todo o caso ficam feitas aqui. Não é demais relembrar que o que foi conseguido agora foi-o em grande parte devido à luta pioneira em Portugal efectuado por estas pessoas, nomeadamente por Jo Bernardo.
Como já disse, depois não se queixem de não haver activistas transexuais. Com o não reconhecimento destas pessoas pela totalidade da mesa de oradores, outra coisa não será de esperar.
Como nota final, uma mensagem de apreço à ILGA Portugal que, apesar de tudo, lá se dignou a lutar pelas pessoas transexuais. Espero que no futuro saiba trabalhar em conjunto com independentes e com outras organizações apoiantes das mesmas causas.
E uma nota final pessoal para Luísa Reis: para quem há alguns anos me apelidou de “Badocha”, pelas gordurinhas que apresentaste toma cuidado que para lá caminhas. Se não és já, pelo menos estás uma “Badochinha”. Bem vinda ao clube.
Não era para ter ido ao debate sobre a lei de alteração de nome e género, mas à última da hora mudei de ideias, e ainda bem que o fiz.
Cheguei em cima da hora, começava às nove, e ainda não se via casa cheia. Pessoas conhecidas já lá estavam. O presidente da ILGA Portugal, Paulo Corte Real, encontrava-se no exterior a fumar um cigarrito e em franca conversa com Bruno Horta, da revista Time Out Lisboa. No interior já se encontravam Luísa reis, do GRIT, Sandra Saleiro, uma das oradoras, o Dr. Pedro Freitas, psiquiatra sexólogo, Nuno Ropio do Jornal de Notícias, enfim, algumas pessoas.
José Soeiro, do Bloco de Esquerda, chegou pouco depois, ainda a tempo de fumar um cigarrinho cá fora enquanto conversávamos. Deu tempo para lhe pôr uma questão, que por sinal não foi sugerida por ninguém durante o debate: O espírito da lei implica que qualquer transexual, deseje ou não submeter-se a cirurgias, tem direito a ver a sua identidade de género reconhecida. Como se sabe, a maioria dos psiquiatras e psicólogos que tratam destes casos, contrariando claramente os Standards of Care da Wpath (World Professional Association for Transgender Health) só consideram como transexual quem se deseja submeter à CRS (Cirurgia de Redesignação de Sexo), portanto em clara oposição ao espírito da lei. A minha pergunta visava saber, no caso em que uma pessoa assumisse claramente perante os psiquiatras e psicólogos o seu desejo e direito de não se submeter à CRS, e eles, desprezando a identidade de género da pessoa, se recusassem a emitir o diagnóstico necessário para se poder proceder à alteração de nome e género, a quem se poderia essa pessoa dirigir para resolver o problema. A resposta que obtive foi que essa pessoa procurasse outro psiquiatra e outro psicólogo. Referi então o caso de pessoas que não tenham dinheiro para irem ao sector privado. A resposta foi que “nesse aspecto não há nada a fazer”.
Isto tem a ver com o quê? Antes desta crise em que estamos, Já não eram muitas as pessoas com posses suficientes para poderem ir a consultas privadas de psiquiatria e psicologia, devido aos altos preços cobrados por estes profissionais por cada consulta. Agora, com a crise, prevê-se uma ainda maior dificuldade, remetendo as pessoas para o sector público, salvo alguns afortunados com posses suficientes para o efeito. E como se sabe, o sector público grassa de profissionais que pensam que o que define o género das pessoas é a genitália e não a identidade de género. Portanto, a não menção da “independência do desejo de se submeter a CRS ou não” vai previsivelmente trazer problemas futuros. Esperemos que me engane.
Pouco depois de Júlia Pereira, outro membro do GRIT chegar, iniciou-se então o debate (ou tertúlia, para quem goste do termo, com a informação de que o representante do PS não podia vir, e que vinha em sua substituição o líder da JS.
Júlia começou por fazer um pequeno background da situação envolvente à lei, e passou a palavra a Luísa. Luísa, agradecendo aos representantes partidários pela lei, começou então a falar do trabalho desenvolvido pelo GRIT e pela ILGA desde a sua formação. Para quem ouviu ficou a sensação de que esta lei existe unicamente graças à ILGA Portugal e ao GRIT. E aqui vi logo para onde se dirigia esta reunião. Nem uma palavra foi dita sobre as activistas transexuais que têm dado a cara estes anos todos pelas pessoas transexuais não pertencentes à ILGA Portugal. Nem mencionou que, além da proposta apresentada pela ILGA, mais propostas foram apresentadas por outras organizações e activistas independentes. Nem disse, já agora, que a proposta inicial da ILGA continha tais absurdidades que forçaram uma proposta de reunião inter-associativa para debater e apresentar-se uma proposta única, à qual a ILGA, na altura, nem se dignou a responder.
Também não disse, obviamente, que o terceiro debate previsto para além dos dois que mencionou e que foram com representantes de dois hospitais que tratam casos de transexualidade (Júlio de Matos e Santa Maria), e que era para ser feito entre pessoas transexuais que finalmente poderiam discutir entre si e debater os problemas comuns, nunca foi feito.
Ou seja, a lei existe graças à ILGA Portugal por intermédio da sua extensão GRIT. As restantes pessoas que estiveram no Parlamento a protestar pela morte de Gisberta, que deram a cara na TV e nos restantes media, que trabalharam na melhora da proposta de lei inicial da ILGA ou que fizeram propostas autónomas, que têm acompanhado as marchas do orgulho levantando a bandeira trans, se não forem da ILGA Portugal não interessam.
Deplorável apagamento do activismo transexual existente no nosso país e deplorável atitude da ILGA Portugal, bem representado pelo silêncio cúmplice do seu presidente. Não é a primeira vez que acontece. Já aconteceu com o Compton Cafeteria Riot, o primeiro grito de revolta das comunidades transexual e transgénero nos Estados Unidos, poucos anos antes dos famosos Stonewall Riots que deram início ao movimento LGBT. Curiosamente (ou não) também a revolta de Stonewall foi protagonizada por elementos das comunidades transexual e transgénero. O primeiro só é recordado por algumas pessoas transexuais que sabem da sua existência, apesar da cortina de silêncio, enquanto o segundo foi usurpado pela comunidade gay. E depois ainda se houvem vozes a queixarem-se da falta de activistas transexuais em Portugal. Pois se os poucos que existem são ignorados e silenciados pelas associações existentes que, em vez de entrarem numa luta conjunta entram numa lógica clubística/partidarista, não devia haver admiração nenhuma. Mesmo com o exemplo dado pelo Bloco de Esquerda e Partido Socialista/Governo que, neste aspecto, souberam juntar esforços para a obtenção de um objectivo comum, as associações portuguesas teimam na recusa de se juntar esforços. Como afirmei atrás, deplorável e lamentável.
Mais lamentável é o facto de serem as próprias “activistas” transexuais a colaborarem conscientemente com esta situação. Nota negativa para o GRIT, Luísa reis e Júlia Pereira neste aspecto.
Mas o que mais me indignou foi os restantes oradores terem ido pela mesma bitola. Sandra Saleiro, que falou a seguir, descreveu alguns factos que apreendeu no decorrer do estudo que tem feito sobre as necessidades mais prementes das comunidades transexual e transgénero, e nada mencionou sobre quem tem lutado de fora da ILGA Portugal. Nem mesmo numa alusão direccionada ao GRIT que fez mais para o fim, alertando para o facto das pessoas transexuais terem de deixar as vergonhas e medos em casa e darem a cara frontalmente por esta causa, dirigida aos membros do GRIT, e estando presentes activistas que dão a cara, as mencionou.
Este alerta despoletou logo uma reacção de Luísa Reis, que, como se sabe é uma das pessoas que mais vergonha têm de serem transexuais, há muito tempo advogando (escondendo-se atrás de) direitos à privacidade e à não divulgação da transexualidade de cada um. Inegavelmente é um direito que assiste a toda a gente. Mas ao estar-se a usar este direito meramente como pretexto para ocultar a própria vergonha e/ou cobardia está-se a desvirtuar esse mesmo direito. Deve-se conquistar esse direito antes de o usar. Desta maneira esse direito fica vazio de significado, não passando de meras palavras que ocultam os verdadeiros motivos.
De seguida falou José Soeiro, do BE, que se dedicou a falar da lei e dos problemas apresentados na comissão que juntou os dois projectos. Aqui vai um reparo para essa comissão: Existem independentes nos deputados, nos partidos políticos, já houve no Governo, independentes podem até ser presidentes da República, mas a comissão deliberou que não podiam ser ouvidos nesta matéria. Com que justificação se silenciam assim as vozes independentes, quando até meros grupos sem existência legal foram ouvidos pela comissão? Fica esta pergunta no ar para reflexão.
Enquanto José Soeiro falava, chegou o representante do PS, que penso ser Pedro Delgado Alves (se não for as minhas desculpas) pois não apanhei o nome, e que discursou no final, dizendo uma coisa que podia ter servido para lançar o debate sobre o assunto mas que passou despercebido às activistas trans da mesa. Mencionou que na revisão constitucional que se avizinha não vai entrar a menção de “identidade de género” como efectivamente devia, mas uma menção mais generalista e que dá azo a interpretações contraditórias: “género”. Que é mais “abrangente” que “identidade de género”.
Muito bem, digo eu, mas qual género? Um caso: uma pessoa transexual feminina vai iniciar o seu processo. O psiquiatra que a atende é adepto fervoroso das teorias de Zucker (psiquiatra tristemente conhecido por ter inventado o “travestismo fetichista” e adepto das terapias de masculinização para transexuais femininas e vice-versa) e em vez de ajudar a pessoa na sua identidade de género decide proteger o género que considera ser da pessoa (masculino, da genitália). Fantasia? Já aconteceu em Portugal e acontece no Canadá (onde Zucker tem a sua clínica).
Se estivesse explicitamente mencionada na constituição a “identidade de género” teoricamente isto não aconteceria. Mas com “género” qualquer pessoa que ache que uma pessoa pertence ao género ditado pela genitália com que se nasce pode obstruir ou discriminar uma pessoa transexual considerando estar a defender o género dessa pessoa. Género não basta, tem de ser identidade de género no artº 13º. Há anos que me bato por isto, e pelo visto vou continuar durante mais anos.
Seguiram-se perguntas da audiência, onde fiquei a saber pela voz da sua presidente que a AMPLOS (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual) não se chama assim mas sim AMPLOSIG (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género) facto que desconhecia por completo e que puseram as suas questões. Não me recordo de todas as questões feitas por toda a gente portanto vou só referir as que me lembro. A AMPLOSIG pôs questões sobre transexuais que tenham filhos menores, da parte dos filhos e da parte da pessoa transexual. Como a lei só refere filhos maiores de idade, como se resolvia a nível de documentação, tal como Nuno Ropio que abordou o mesmo tema.
Penso que a lei está bem nesse aspecto. O dar o direito aos filhos de, quando maiores de idade, poderem escolher se alteram a documentação é bom. Caso contrário, para que alguns transexuais (que referi atrás, os envergonhados) não serem confrontados com a sua transexualidade (Ai Jesus, cruzes, canhoto), estava-se a forçar quem não tem nada a ver com o assunto a assumir algo que pode ser contra a sua vontade. Não podemos esmagar direitos de outrém com os nossos direitos, ou seja, a nossa liberdade acaba quando começa a do outro.
Este tema insere-se, por razões óbvias, na adopção (e direitos de parentalidade), sendo um dos pontos em que a luta de duas comunidades se junta, e que pode dar um empurrão no sentido de se acabar com essa discriminação que não tem razão de existir. Todos os estudos independentes de que tenho conhecimento revelam que um casal homossexual tem as mesmas capacidades de criar e educar uma criança como os casais heterossexuais. O mesmo para casais transexuais em comparação com os casais cissexuais. Mas isto ainda irá ser debatido muitas e muitas vezes no futuro.
O Dr Pedro Freitas afirmou apoiar esta lei (um bocado estranho, considerando que era adepto da esterilização forçada das pessoas transexuais) e relembrou que se tem de lutar contra a abusiva e intolerável ingerência da Ordem dos Médicos nos processos de transexualidade (bandeira que arvoro também há muito tempo, tendo-a inclusivé mencionado numa reunião com Miguel Vale de Almeida como uma das principais reivindicações nossas). A ser verdade dou os parabéns ao Dr por esta mudança de atitudes e concordo com ele a 100%.
Mais algumas perguntas por elementos da rede ex aequo (penso eu) das quais nada me ficou na memória (as minhas desculpas) e pelo adiantado da hora o debate acabou. Não sem antes Luísa ter agradecido por aquela que é considerada como a lei mais avançada do mundo (o que me espantou pois ela ainda há bem pouco tempo atrás afirmava a pés juntos que só eram transexuais as pessoas que se queriam operar, mas achei um bom avanço pessoal da parte dela) e Júlia Pereira ter anunciado mais um debate previsto sobre o processo clínico, e outro em memória de Gisberta (finalmente vi os meus esforços recompensados, considerando que este último é fruto da minha insistência em se comemorar o Transgender Day of Remembrance), previsivelmente em Fevereiro (o clínico não sei quando será). Também me caiu bem a sua declaração de que “esta lei não era o fim da luta, mas sim o princípio”. Só faço votos para que se estivesse a referir às pessoas transexuais e seus apoiantes na totalidade e não só da ILGA Portugal.
Algumas perguntas ficaram por fazer: Porque a lei não contempla explicitamente a “identidade de género”? Porque não foi mencionado na lei a independência de qualquer cirurgia para o reconhecimento da identidade de género da pessoa?
Podia tê-las feito? Sim, podia. Mas depois de ver o completo apagamento de transexuais que sempre deram a cara por estas lutas, sofrendo na pele as consequências desta luta, pessoas como Jo Bernardo, Lara Crespo e eu, Eduarda Santos, e mais algumas que foram aparecendo, fiquei sem vontade de o fazer. Devia tê-lo feito? Talvez sim, talvez não. Mas em todo o caso ficam feitas aqui. Não é demais relembrar que o que foi conseguido agora foi-o em grande parte devido à luta pioneira em Portugal efectuado por estas pessoas, nomeadamente por Jo Bernardo.
Como já disse, depois não se queixem de não haver activistas transexuais. Com o não reconhecimento destas pessoas pela totalidade da mesa de oradores, outra coisa não será de esperar.
Como nota final, uma mensagem de apreço à ILGA Portugal que, apesar de tudo, lá se dignou a lutar pelas pessoas transexuais. Espero que no futuro saiba trabalhar em conjunto com independentes e com outras organizações apoiantes das mesmas causas.
E uma nota final pessoal para Luísa Reis: para quem há alguns anos me apelidou de “Badocha”, pelas gordurinhas que apresentaste toma cuidado que para lá caminhas. Se não és já, pelo menos estás uma “Badochinha”. Bem vinda ao clube.
2 Comments:
At 22 dezembro, 2010 20:18, Júlia Mendes Pereira said…
Olá Eduarda e todos os leitores do blog!
Antes de mais, enquanto organizadora da tertúlia/debate, agradeço-te, Eduarda o cuidado em escrever este texto de opinião. No entanto quero contribuir com a minha posição em alguns dos assuntos focados pela Eduarda:
Sobre a menção (ou falta dela) ao trabalho de outras associações e independentes, da minha parte defendo que não falo sobre trabalho nenhum sem sentir que sei sobre o que estou a falar. É claro que posso cometer erros, mas evito falar só por falar. Desta forma, sobre trabalhos de activismo, falei apenas naqueles em que participei. Sendo esta uma tertúlia/debate do GRIT, pareceu-me útil que se falasse e dispendesse algum tempo da tertúlia para falar sobre o trabalho do grupo nesta área. Felizmente pudémos contar com uma fundadora do GRIT, a Luísa Reis, para assumir essa tarefa. Nenhuma de nós se viu na obrigação de ser porta-voz do trabalho das outras associações e activistas, e aqui a única opção para se falar de tudo o que se fez, era ter um representante de cada associação/grupo e ainda todas as activistas que se dizem independentes a falar do seu trabalho. O que dava pelo menos mais cinco oradores, o que não era viável (até porque o grupo de oradores já era grande).
Esta "falha", se assim quisermos chamar, tentou-se colmatar com o espaço de debate, em que quem quisesse, além de fazer perguntas, podia acrescentar algo às exposições (que de resto foi o que AMPLOS fez, aproveitando o espaço para lembrar que a questão da identidade de género também é uma preocupação sua, integra a mãe de um transexual nos seus orgãos sociais, e pretende fazer trabalho nesta área).
Sendo que estavam lá representantes das duas iniciativas de "lei de identidade de género" aprovadas na Assembleia, a ideia era que estes falassem do contexto e dos factores motivadores para as mesmas iniciativas (o que de resto fizeram). De modo algum houve intenção de atribuir ao GRIT ou à ILGA a responsabilidade das iniciativas. O GRIT é um grupo de pessoas que têm lutado por esta lei. Além delas há outras, sem dúvida! Não podemos é esquecer que esta tertúlia em si é uma actividade do GRIT, não de nenhuns outros activistas.
Acrescento ainda o que a Eduarda não disse (ou negou), que foi a menção do trabalho da at. - Associação para o Estudo e Defesa da Identidade de Género (e logo das respectivas activistas) por parte da oradora Sandra Palma Saleiro. E ao dizê-lo tenho de colocar a questão de se só era válido e importante falar-se da at. e suas activistas, se fosse pela boca das activistas do GRIT...
Aproveito para reafirmar, agora publicamente, a pena que tenho em que não tenhas usado o espaço de debate para expressares a tua opinião quanto àquilo que achaste errado na nossa exposição. Podias ter aproveitado também para reafirmar a importância de outros activistas, que não os do GRIT, nesta luta, e ainda para colocar lá as questões que colocas aqui e ninguém mencionou na altura. Tenho mesmo pena que não tenhas querido contribuir para o debate e torná-lo melhor no que te era acessível, e preferires apenas criticá-lo por aqui.
Cumprimentos,
Júlia Mendes Pereira
At 27 dezembro, 2010 04:22, Unknown said…
Ora bem, o obvio parece ter iludido. Ninguem disse, nem eu quis dizer ou implicar isso, que se tivesse de falar do trabalho desenvolvido por outros, sem conhecimento directo.
Mas repara que para se afirmar, por exemplo, que esta lei "foi fruto de tod@s os que lutaram pelos direitos trans (leia-se transexuais)", não é necessário estar presente na mesa de representantes de outras associações ou independentes, em vez da declaração subliminar da lei ser fruto do trabalho do GRIT/ILGA Portugal.
E que houve lutas desde hà anos atrás protagonizadas por pessoas que, independentemente dos riscos, deram a cara pela causa trans, e que culminaram até agora nesta lei, qualquer pessoa na mesa sabia-o (ou devia sabê-lo) sem correr o risco de "falar só por falar".
É este apagamento a que me refiro, não a uma descrição pormenorizada do que foi feito por outras associações ou independentes, que não teria cabimento nesta reunião.
Outra coisa, se te estás a referir à alusão feita pela Sandra da aT, que a nível de associações se limitou a um "existiu a aT" e em relação a independentes nem os referiu, tive muitas dúvidas sobre incluir esta bombástica frase no meu comentário ou não, mas decidi não o fazer.
Que a aT existiu já toda a gente sabe e uma declaração assumindo que existiu (quando que eu saiba não existe nenhuma dúvida sobre a aT ter existiso ou não) pareceu-me muito fraca (podia ter acrescentado que o trabalho desenvolvido tinha aberto caminho para o que se conseguiu agora). E também deixou de fora os independentes, como parece ser regra.
Agora ser eu a iniciar uma discussão sobre a falta ou não da menção de outras pessoas, independentes ou não, que contribuíram para o que agora foi conseguido, considerando terem existido duas pessoas transexuais na mesa de oradores que não o mencionaram? Não, não era a altura certa, nem o propósito da tertúlia era esse. Só servia para deixar impressões erradas nas pessoas presentes.
Quanto às questões que coloco aqui, e com algumas pessoas transexuais presentes na tertúlia, notei que a única voz trans a ouvir-se na tertúlia (salvo os oradores) foi uma que perguntou "quando é que posso mudar de nome?". Perante este "activismo" presente e o apagamento que referi atrás, a relevância das minhas questões, pelo menos a meu ver, foi posta em causa, logo preferi não as fazer.
Salvo uma que tinha de a destrinçar de modo a não haver dúvidas, portanto tive de a fazer pessoalmente, pois na tertúlia arriscava-me a que alguém perguntasse outra coisa relacionada e ficaria sem ter a hipótese de obter certezas, caso ainda permanecessem dúvidas.
E penso que está tudo.
Jinhos
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