Transfofa em Blog

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quarta-feira, setembro 28, 2011

Mudar de hospital: a luta:
Parte I: a saga inicia-se


Há muito, muito tempo, numa galáxia muito muito longe...

Num pequeno planeta num pequeno sistema solar perdido nos braços de uma galáxia em espiral, existiam pedaços de terra que emergiam da vastidão de um oceano. No extremo ocidental de uma dessas massas de terra vivia um povo em decadência, já muito longe dos seus tempos áureos. A capital desse povo chamava-se Lisboa. Eu vivia na periferia dessa capital.

Existiam dois hospitais na zona de Lisboa que tinham equipas para os processos de transexualidade: o Hospital Júlio de Matos e o Hospital de Santa Maria. No Hospital Júlio de Matos encontravam-se o Dr. Pedro Freitas e as psicólogas Íris Monteiro e Catarina Soares.Em Santa Maria, por exemplo, exerciam esta função o Prof. Dr. Rui Xavier Vieira e o Dr. Daniel Sampaio.

Iniciei o meu processo no hospital Júlio de Matos em Fevereiro de 2006,com a psicóloga Íris Monteiro e posteriormente com o Dr. Pedro Freitas. Em Dezembro do mesmo ano, inciei a 2ª opinião no Hospital de Santa Maria, a meu pedido, pois usualmente a 2ª opinião era feita nos Hospitais da Universidade de Coimbra, o que me levantava problemas económicos relativos à ignorada quantidade de vezes que me teria de deslocar a Coimbra, com o Prof. Dr. Rui Xavier Vieira.

Em Fevereiro de 2008 acabei as consultas da 2ª opinião. O relatório, esse, só o vi em Novembro de 2008 (tem a data de 7/11/08). Só para obter este relatório demorei mais de dois anos e meio. Curioso como por várias vezes o próprio Prof. Dr. Rui Xavier tem afirmado que o processo completo (com a 2ª opinião incluída) demora dois anos, quando só um relatório emitido por ele demora mais do que esse tempo. O normal, pelas informações que recebi, é serem entre uma a cinco consultas para a 2ª opinião, pelo menos nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As minhas foram 13, salvo alguma que me tenha esquecido de apontar.

O processo própriamente dito roda todo à volta das cirurgias. A grande preocupação é que a pessoa tenha vontade em se submeter a elas. A identidade de género da pessoa não passa de um pormenor, um acidente de percurso. O foco são as cirurgias. São feitos testes para despistar posíveis doenças mentais que possam existir, sendo que no caso de existirem o processo é imediatamente terminado. Poder-se-à presumir então que a transexualidade fornece uma qualquer espécie de imunidade a qualquer doença psíquica? Sinceramente não me parece. A realidade é que não sabem diferenciar a transexualidade de uma doença psiquiátrica..Portanto mesmo que apesar de se ter uma qualquer doença psíquica poder-se ser transexual, essa realidade é automaticamente negada,

Curiosa também é a percepção que o psicólogo que me acompanhou na 2ª opinião teve do meu tratamento hormonal, Pedro Pechorro de seu nome. Eu iniciei o meu tratamento hormonal algum tempo antes de iniciar o processo (um ou dois anos, mais ou menos). A hormona que tomava chamava-se Premarin e mandava vir pela internet através de uma pessoa conhecida. Um belo dia decidi procurar na net informação sobre este composto hormonal, que efectivamente foi o que me desenvolveu o peito, e descobri um facto que achei deveras curioso: era sintetizado da urina de éguas grávidas. Nunca mais me esqueci disto e mencionei-o numa qualquer consulta como facto curioso. O resultado disto foi esta frase que consta do meu relatório de 2ª opinião: “(...) Diz que tem as mamas desenvolvidas porque bebia urina de éguas grávidas,”

Não preciso dizer que moro em Almada que nesta altura já se encontrava bastante urbanizada. Portanto estão a ver os problemas que teria: descobrir picadeiros ou outros sítios que tivessem éguas, saber se estavam grávidas e se alguma encontrasse nestas condições passar os dias atrás dela à espera que urinasse e guardar a urina bem acondicionada.

Levei o relatório para a psicóloga Íris, que notou logo que o mesmo não se encontrava assinado, entre outros problemas. Para encurtar uma história longa, depois de andar várias vezes entre os dois hospitais, que ainda demorou alguns meses, pois não podia fazê-lo todos os dias, e tinha de esperar amiúdas vezes por consultas, que podem espaçar um ou mais meses entre elas, lá consegui resolver o imbróglio.

Entretanto algumas coisas se tinham alterado no Hospital Júlio de Matos. O Dr Pedro Freitas, nos finais de 2007, tinha abandonado o Hospital Júlio de Matos para, soube-o posteriormente, ir para o ILAS (Instituto Luso Americano de Sexologia), entidade privada, onde, penso eu de que, continuou a trabalhar na mesma área. De notar que no Hospital Júlio de Matos tratava da parte de endocrinologia.

Como resultado, ficou o Dr Carlos Fernandes a tratar da parte endocrinológica.

A 24 de Março de 2009 fui internada na Cirurgia Vascular do Hospital Garcia de Horta com uma trombose venosa profunda illofemoral-popliteia total oclusiva na minha perna direita. Saí a 27 de Março e tive de parar o tratamento hormonal durante um ano. O nome vulgar é tromboflebite, e embora não haja causa-efeito. soube depois que a idade, o tabaco e o tratamento hormonal encontram-se entre as coisas que as potenciam.

No ano anterior, sensivelmente em Outubro, numa consulta com o Dr Carlos Fernandes, já com a minha intuição a querer dizer alguma coisa, perguntei se não seria boa ideia reduzir o tratamento hormonal para metade. Estava a tomar dois comprimidos de Zumenon e dois de Ciproterona 50mg por dia. Como resposta foi-me dito que se diminuísse as doses por metade só fariam metade do efeito.

Quer dizer, ninguém precisa de ir a um médico, qualquer que seja a sua especialidade, para ouvir que metade de uma dose qualquer de um qualquer medicamento produz metade do efeito. Penso que isso é obvio para toda a gente. O que eu quereria ouvir era, por exemplo “dada a sua idade e o facto de fumar, a minha opinião é que deve reduzir as doses para evitar possíveis problemas futuros”. Ou seja, dizer-me o que eu não sabia e não o que é evidente..

Depois de perder a confiança neste médico, porque a perdi, estive à volta de um ano com o processo parado devido à tromboflebite. Quando decidi que já tinha parado por tempo suficiente, regressei ao Hospital Júlio de Matos para retomar o tão abruptamente parado processo.

Mais novidades: a psicóloga Íris já tinha saído do Hospital para o ILAS, embora ainda lá fosse para não abandonar os seus pacientes. E os problemas começaram aqui, com as marcações para as consultas. Seria ela a marcar, mas não atendia telefonemas, ou seja, não havia maneira de a contactar. Enviei emails, pois entretanto arranjei um endereço de email dela, e nada, nem uma resposta, nem um contacto, o tempo a passar e o processo parado.

A última vez que a vi pessoalmente foi em Março de 2010, no Anfiteatro III da Faculdade de Medicina da Universidade Nova, no Campo dos Mártires da Pátria em Lisboa onde se deu uma conferência intitulada “MUDANÇA DE SEXO na clínica, no bloco, na pessoa” onde ela era uma das oradoras. Nessa altura contactei-a pessoalmente e ficou acordado que responderia aos meus mails e foi quando me deu o seu email . No Dia 22 de Março enviei o seguinte email :

“Bom dia Drª Iris
Como acordado aqui lhe envio este email com o pedido para que o meu processo seja transferido para o Hospital de Santa Maria. Assim, agradeço-lhe que o faça seguir com a maior brevidade possível, visto já ter estado mais de um ano sem qualquer avanço significativo. Penso que isto significa também que necessitarei que junto com ele siga o relatório da avaliação da equipa que me acompanhou no Hospital Júlio de Matos, que passará a ser a segunda opinião.
Assim, agradeço-lhe que me informe se necessitarei de tomar alguma acção, ou se a Drª pode tratar de tudo sem necessitar de mim.
Um beijo
Eduarda Santos”

Dia 24 de Março enviei um segundo email com o número do meu telemóvel que, embora soubesse de antemão que já o tinha dado, alguma coisa podia ter acontecido, mudar de telemóvel e o número perder-se, por exemplo. No dia 31 de Março enviei um terceiro email. Até hoje espero resposta.

O tempo foi passando, a Íris deixou de ir ao Júlio e eu e outras pessoas a ver o tempo a passar. O Hospital também se deixou ficar. Visto que houve a saída de um elemento, seria de esperar que os seus pacientes passassem para outro, Catarina Soares, por exemplo. Mas não. Saíu, saíu, e os processos lá ficaram a ganhar pó.

Não faço ideia porque motivo Íris Monteiro abandonou completamente os seus pacientes no Hospital Júlio de Matos, sem ter tido o cuidado de passar os processos para outra pessoa. Para mim não me parece uma decisão ética, no mínimo. Também o próprio hospital poderia ter tido esse cuidado, visto os processos estarem a ser feitos lá. Como impressão parece-me que o hospital não estará muito interessado em continuar com estes casos, apesar de continuarem. Mas o tratamento dado ao meu processo e a outros que sei estarem na mesma situação não me parece ser o indicado.

Também penso não ser necessário referir a implicação desses abandonos (Pedro Freitas e Íris Monteiro) para a obtenção do relatório para poder alterar nome e género. Já tenho 53 anos, estou desempregada há mais de um ano, já não recebo subsídios e agora que o governo tem um programa específico para desempregados de longa duração, estou encravada sem ter a quem requerer o dito relatório. Claro está que inscrever-me sem essas alterações está definitivamente fora de questão. Mas isto é para ser abordado mais para a frente.

Até que um belo dia me fartei de tanta falta de respeito por pessoas que têm a sua vida parada demonstrado pelo Hospital, e fui eu própria pedir a transferência para Santa Maria, pois nunca fugi de um desafio. Também não conheço na zona outro hospital que tenha estas consultas pelo SNS. O ILAS é privado, portanto só serve a quem tem dinheiro. Desempregadas ou vão para Santa Maria ou para o Júlio de Matos.

Fica aqui a denúncia de situações que acontecem e que raramente ou nunca são mencionadas, e exemplos da forma como muitos psiquiatras e psicólogos tratam as pessoas transexuais, um belo exemplo vindo de pessoas que afirmam sempre que estão lá para ajudar. Não considero estes exemplos como éticos nem como exemplos a seguir. Espero que ajude a alterar qualquer coisa no atendimento às pessoas transexuais.

Infelizmente este tipo de casos não são excepção. Acontecem muito. E continuam a acontecer porque quem se encontra a fazer processo tem sempre receio de que, se falam ou se reclamam, antagonizam os psiquiatras e psicólogos com as evidentes consequências para os processos, que ou ficam em banho maria ou é-lhes mesmo negada a sua transexualidade como retaliação.

No dia 29 de junho de 2010, com o número de saída 4479, o processo seguiu. Ou assim pensava eu.

Fim da primeira parte.