Discussão sobre as propostas de identidade de género no “Queridas manhãs”: a crónica
Como se sabe, existem duas propostas (BE e PAN) dirigidas a retirar a obrigatoriedade da existência de um relatório médico nos processos de transexualidade. Existirá uma terceira proposta (PS) que ainda se encontra no segredo dos deuses.
Sobre estas propostas, ambas as existentes (e não existem razões para se acreditar que na outra seja diferente) referem na alínea c) do nº1 do Artº 4º que uma pessoa não pode estar interdita ou inabilitada por anomalia psíquica. Questiono qual a definição de “interdita”, de “inabilitada” e “anomalia psíquica”. Por experiência própria sei que a minha definição de determinados verbos e substantivos não é necessariamente concordante com a de outra pessoa.
Mas isto a propósito de ter assistido ontem, Quarta-feira 18 de Janeiro na SIC, no programa “Queridas Manhãs”, a um “debate” de uns 20 minutos sobre as propostas de lei que referi atrás. E digo debate porque, como convidados estiveram o Dr. Décio, como sempre a fazer de testa de ferro para os psis, e David Duarte, homem trans declaradamente pela patologização das identidades trans a fazer o papel do Troll do costume, papel esse muito do agrado do Dr Décio, que anda sempre com um ou outro exemplar para mostrar o que são os “verdadeiros transexuais” segundo a sua lógica.
E aqui veio a primeira curiosidade: neste debate não usou o termo “verdadeiros transexuais” uma única vez. Ou foi a primeira vez que o fez, ou houve uma ou outra que não estou a ver agora, mas é certo que é raríssimo.
Ou seja, convida-se para um debate só um lado e ignora-se o outro. Como abertura do debate, parece-me um pouco tendenciosa. Mas são escolhas de quem faz o programa, escolhas feitas por quem tem legitimidade para as fazer e por quem tem uma agenda e quer manipular a opinião pública.
Começa com o David a, inevitavelmente, descrever como era infeliz antes e como é feliz agora, a lenga lenga usual tão do agrado dos media, não por não ser verdade, mas por ser uma fórmula já demasiado gasta, em que se aproveita para relacionar as cirurgias com o bem estar futuro, subliminarmente negando assim a existência de pessoas transexuais que não desejam a totalidade ou parte das cirurgias, algo que já Harry Benjamin no seu tempo reconhecia e que a WPATH reconhece de há muito, ao contrário da maioria dos psis nacionais e da opinião do Dr Décio, pelo menos até recentemente.
Quando se chega à parte da diferenciação entre homossexualidade e transexualidade, lá veio a esperada pérola do Dr Décio “a homossexualidade é uma orientação sexual e a transexualidade é uma doença”, porque a discrepância entre o cérebro que nos diz que somos de um género e o corpo do outro dá sofrimento, portanto se dá sofrimento é uma doença. Como tal, o amor, por exemplo, que já me deu sofrimento mais do que as doenças que tive, também deve ser uma doença. A discriminação que as pessoas sofrem por serem diferentes, seja porque razão for (ser-se trans, homo, gorda, feia) e que já tem levado a tantos suicídios tem sido abordada pelo lado errado (sociológico). por este ponto de vista é uma doença e deve ser tratada por um médico. Pois é, não faz sentido, não é?
Quando questionado sobre a cessação da obrigatoriedade da apresentação de um relatório médico para se proceder à alteração de nome e género na documentação oficial (e mesmo no acesso a cirurgias e tratamentos hormonais), foi a posição que se esperava: referiu como sempre faz o Dr Harry Benjamin e a WPATH, afirmando falsamente que os psiquiatras e psicólogos seguem as recomendações desta última, não mencionando que (e aqui foi onde se sentiu a falta dos “verdadeiros” e “falsos”) a WPATH nas suas orientações assume todas as identidades trans, desde genderfluid até queer, por exemplo, considerando que são todas válidas e que estas pessoas devem ter o direito de aceder a tratamentos e cirurgias que desejem, coisa que mais à frente o Dr Décio contradiz, e assume a existência de pessoas transexuais que não desejam a totalidade ou parte das cirurgias, coisa que até há bem pouco tempo o Dr Décio era frontalmente contra, pois quem não queria as cirurgias todas não era (verdadeiro) transexual. E esta é a posição, por enquanto dominante, dos psis que controlam os processos de transexualidade. E esta é uma das razões pelas quais os relatórios devem ser excluídos.
Outros critérios abusivos foram aflorados pelo Dr quando afirma dois anos, mais ou menos, para se chegar a um diagnóstico. Casos houve, e pena que a Daniela não tenha apontado isto (já lá iremos) em que, por exemplo, um trans masculino teve o seu processo encravado durante 5 anos por, pasme-se, usar uma trança finíssima no cabelo (muito em moda há uns tempos atrás por alguma juventude) ou como uma trans feminina que andou 7 anos em consultas por usar roupa que o psiquiatra achava que não era muito feminina e por não dar a impressão de querer fazer a cirurgia final (em desrespeito às recomendações da WPATH). Portanto os processos andam, não de acordo com a identidade de género de cada pessoa, mas de acordo com os estereótipos femininos ou masculinos que cada analisador tem.
Portanto os psiquiatras e psicólogos, em vez de exercerem a sua função de ajudar cada pessoa a ser como é e a aceitar-se, exercem o papel de juízes, controladores da moral pública e garante da não existência de aberrações como mulheres com pénis ou homens com vagina, num completo desrespeito das normas da WPATH, tão badaladas pelo representante dos mesmos (leia-se Décio).
Continuando, ambos (David e Décio) concordam com a redução da idade válida para que as alterações possam ser pedidas dos 18 para os 16 anos, o Dr Décio com algumas reticências, não especificadas na altura.
O David tocou então num ponto muito importante: o peso da sociedade, da família e amigos na decisão de nos assumirmos. E este ponto é muito importante. Quantas pessoas vão atrasando o seu coming out por estas razões? Como se sabe, muita gente arrisca-se a perder a custódia de filhos, perder empregos, amizades, vida social, riscos estes inúmeras vezes negligenciados pelos psiquiatras avaliadores (eu própria tive conversas arrepiantes com psiquiatras em que a posição deles era “se é transexual, tem que se assumir, perder empregos, amizades e/ou família não interessa, não temos nada a ver com isso”. Ou seja, um lavar de mãos que arrepiaria Pilatos.
A seguir David meteu os pés pelas mãos ao comentar o fim do relatório médico. Convenhamos, em primeiro lugar, quem quiser acompanhamento psiquiátrico durante o processo tem-no garantido, como qualquer outra pessoa no SNS. O não ser necessário um relatório para se alterar o nome ou aceder a cirurgias que cada pessoa considere premente para o seu bem estar continuará a estar garantido na lei. Segundo, o fim destes processos não implica que uma pessoa se automedique sem acompanhamento médico. Qualquer pessoa pode ir a um endocrinologista e ter acompanhamento médico durante a sua transição. Não tem é um julgamento. O David parece estar convencido que o fim dos processos implica uma proibição dos mesmo. Nada disso, quem quiser que lá vá. Mas por livre vontade, não forçadamente. É disso que se trata.
Vem uns momentos depois mais uma pérola do Dr.. Estilo “estão a ver?” solta a bomba que com esta lei “dez milhões e meio de portugueses podem ir amanhã mudar de nome e tudo se retiram o relatório”. Pois, está-se mesmo a ver. Acrescentando que deixa de ser uma lei de disforia de género para passar a ser um lei geral. Não vejo problema aqui. Mas a seguir deixou um sério aviso às grávidas.
Vejamos a lógica: como deixa de ser necessário um relatório médico, deixa de ser um doença. Como deixa de ser uma doença, deixa de haver médicos para tratarem não-doenças, pois os médicos só tratam doenças. Simples. Portanto, ou a gravidez passa a ser considerada uma doença, ou as grávidas deixam de ser acompanhadas durante a gravidez. Não é? Graças por não ser candidato a bastonário da OM, senão ai das grávidas.
De realçar que, nas propostas encontram-se inscritos o direito a cirurgias e tratamentos que a pessoa deseje, na proposta do BE no nº 2 do Artº 12º, na proposta do PAN no nº 3 do Artº 11º. Logo, uma recusa médica como o Dr Décio diz seria uma desobediência à lei.
E termina a chamar de estúpidos quem apoia a despatologização dos processos, subtilmente afirmando, quando David foi mencionado por João Paulo Rodrigues como “quem passou por este processo e considera o mesmo importante” que “este é inteligente, sabe do que fala”, como se a quantidade de pessoas trans apoiantes da despatologização não o fosse. Normal numa pessoa egocêntrica que pensa: “eu é que sei, eu é que tenho razão, quem concorda comigo é que sabe do que fala, quem tem outra opinião é estúpido e não sabe do que fala, porque se soubessem, concordavam comigo”.
E aqui o Dr esteve francamente mal. Desde há muito que tenho opinião contrária à dele, já o critiquei inúmeras vezes, cada vez que fala sobre estes temas, mais precisamente, mas nunca o ofendi pessoalmente por não concordar comigo, como ele fez, meio dissimuladamente. É um excelente profissional na sua área, cirurgia estética, mas não tem intervenção nos processos, pois só se vai para a cirurgia depois de se ter o processo completo. Como pessoa sempre o achei uma boa pessoa, uma espécie de avôzinho e não estava à espera que entrasse pela ofensa pessoal. Perdeu créditos com essa.
A seguir vem a intervenção telefónica de Daniela Bento, que inicia o seu depoimento com propaganda à ILGA-Portugal qb., fala sobre o processo dela, traz para a discussão o não binarismo o que, num país que ainda não sabe o que são pessoas trans, trazer para debates temas como o não binarismo ou a fluidez de género parece-me um pouco a mais, ainda por cima num programa que não dá tempo sequer para se falar convenientemente sobre o tema escolhido. Mas foi a escolha dela, que deu azo a que o Dr desse o troco questionando onde fez o diagnóstico para mudar de nome e que não se sentir homem nem mulher era um contrassenso em relação ao diagnóstico de disforia de género.
Cláudio Ramos, numa demonstração de ignorância, questionou-a porque mudou de nome (para feminino) se continua fisicamente um homem (boa pergunta mas não nestes termos, se não se sente nem homem nem mulher e prefere ser tratada de forma neutra, porque mudou para um nome feminino?). Daniela embrulha-se, não responde (uma oportunidade perdida para dar voz às pessoas transexuais que não se querem operar), não rebateu nenhuma das afirmações que o Dr fez ao longo do programa (podia tê-lo feito) e entra numa conversa sobre as experiências pessoais identitárias que não eram o assunto em foco. Boa conversa para se ter entre pessoas minimamente dentro do assunto, mas não para se ter num programa destes, em que convém ser-se claro, simples e sucinto. Está-se a falar para uma audiência que à partida nada sabe sobre o assunto.
Seguidamente entra numa retórica entre o público e o privado, que não percebi porque veio à baila, falou da falta de médicos e passou por cima dos problemas com as cirurgias em Coimbra (já que decidiu seguir por esse caminho) existentes. Resultou como manobra de diversão para fugir a questões mais incómodas num programa de tempo limitado, mas não convém ser usado muitas vezes.
No fim, como era de se esperar, vieram os conselhos para ir aos médicos, as ameaças de não doença-não tratamento, a treta do costume e foi a vez do David de fazer propaganda à Jano qb.
Quem quiser ver o vídeo, clique aqui.
Eduarda Alice Santos
Publicado a 20 de Janeiro de 2017 no Portugalgay
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